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19/05/2023

DAVIDE GALLO LASSERE
Nove teses sobre o internacionalismo hoje

Davide Gallo Lassere, euronomade.info/, 31-3-2023
Traduzido por  Florence Carboni, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Davide Gallo Lassere (1985) é um filósofo italiano que recebeu seu doutorado de Nanterre e Turim com uma tese sobre "Dinheiro e capitalismo. De Marx para as moedas do comum" em 2015. Ele é Professor de Política Internacional e Chefe de Admissões no Instituto da Universidade de Londres, em Paris. PublicaõesFB

Nós também vimos primeiro o desenvolvimento capitalista e, a seguir as lutas dos trabalhadores. Isto é um erro. Devemos reverter o problema, mudar o sinal, partir do princípio: e o princípio é a luta da classe trabalhadora.

(Mario Tronti)

 

Desde o século XIX, o internacionalismo tem sido um dos pilares fundamentais dos movimentos revolucionários, sejam eles antiescravatura, operários, anticoloniais ou outros. O internacionalismo, enquanto extensão do campo de luta além do Estado-nação, é uma das três principais características dos movimentos comunistas, juntamente com a abolição da propriedade privada e o desmantelamento da forma Estado. 

Londres, 1864: fundação da primeira International

Entretanto, se considerarmos a vastidão e a importância da história dos movimentos inter ou transnacionais (de acordo ao modo como se desdobram - se entre ou além das fronteiras nacionais), ficamos surpresos com a riqueza do material empírico e historiográfico em comparação com uma certa pobreza em teorização [1]. De fato, pode-se argumentar que o internacionalismo, enquanto fenômeno histórico e político, é fundamentalmente sub-teorizado. Portanto, poderíamos perguntar até que ponto é possível desenvolver, se não uma filosofia política, ao menos uma teoria social e política do internacionalismo? Ou, ao contrário, indo mais longe, imaginar que existe uma ontologia e uma epistemologia específicas dos movimentos inter e/ou transnacionais? E então, para além das peculiaridades nominais, qual ou quais denominações são mais apropriadas: internacionalismo ou transnacionalismo? internacionalismo subnacional ou transnacional (Van der Linden, 2010)? Local ou global (Antentas, 2015)? Forte ou fraco (Antentas, 2022)? Material ou simbólico? Revolucionário ou burocrático? Comunista ou liberal? Operário? Feminista? Antirracista? Ecologista? O internacionalismo em si mesmo é um meio ou um fim? E, é claro, a lista poderia continuar [2]...

 Paris, 14 de julho de 1889: fundação da Segunda Internacional

Contudo, o que é altamente significativo, hoje mais do que nunca - em um momento de grande crise econômica e social, quando os ventos de guerra entre as potências mundiais estão soprando novamente, em um mundo pós-pandêmico e superaquecido - é o fato de que a questão estratégica do internacionalismo está voltando à vanguarda dentro dos movimentos sociais e políticos: há uma consciência crescente de que estas forças hostis não podem ser derrotadas lutando em ordem aleatória, cada homem por si, confinado dentro do perímetro de nossos Estados-nação, ou permanecendo ancorado nos territórios, implementando exclusivamente práticas micropolíticas. É necessário poder intervir no mesmo nível destes processos, que são por definição globais e planetários. Para isso, devemos ser capazes de desenvolver raciocínios e práticas que estejam à altura dos desafios colocados pela geopolítica, mecanismos de governança, do mercado global às mudanças climáticas etc. Mas, na história dos movimentos radicais e revolucionários, tais raciocínios e práticas são chamados de internacionalismo e, em menor medida, de cosmopolítica [3].

É por isso que hoje parece mais importante do que nunca repensar o internacionalismo. A boa notícia é que não estamos começando do zero. Na verdade, os anos 2010 foram pontuados pela erupção de numerosos protestos e revoltas contra as consequências radicalmente antissociais e antidemocráticas das diversas crises (econômica, política, sanitária, climática, etc.). A má notícia é que a década atual, e as que virão, são, e serão cada vez mais, perturbadas pela intensificação dos confrontos geopolíticos e pelo aprofundamento das possibilidades de uma catástrofe ecológica. Ciclos futuros de luta surgirão em um mundo cada vez mais perturbado por claras contradições e antagonismos. E eles serão forçados a operar neste contexto modificado. O que segue, portanto, são apenas nove teses simples, elaboradas a partir de algumas experiências francesas e europeias, com o objetivo de destacar o que poderia ser considerado os pontos fortes e fracos dos movimentos globais dos anos 2010. Elas pretendem ser uma pequena e parcial contribuição ao debate político imanente a esses movimentos, mas também uma tentativa preliminar e não exaustiva de enquadrar a questão do internacionalismo de forma original, de modo a reler em luz de fundo a história bicentenária das lutas inter ou transnacionais, desde as ressonâncias globais de 1789 até o ciclo altermundialista, passando pelas datas simbólicas de 1848, 1917 e 1968 [4].

 

 Moscou, 1919: fundação da Terceira Internacional

Tese 1: Ontologia I: Fábrica Terrestre

As lutas sociais e políticas estão no centro da transição para o Antropoceno. Enquanto motores do desenvolvimento capitalista, elas são cruciais para compreender os processos que definem as múltiplas crises ecológicas contemporâneas. Dito de outra forma: a explosão das emissões de CO2 na atmosfera e a progressiva destruição da natureza estão intimamente ligadas às lutas de classe e anticoloniais; são um "efeito colateral" da resposta capitalista aos impasses induzidos pelas práticas de resistência e de contrasujeição de subalternos. O aquecimento global, por exemplo, é o resultado de antagonismos entre grupos humanos e, como tal, alimenta ainda mais as tensões sociais, econômicas e políticas. Esta é a ideia básica de parte da historiografia ecomarxista, seu diagnóstico do presente e suas perspectivas de ruptura futura. A mudança de temperatura na Terra - provocada principalmente pelo uso capitalista de combustíveis fósseis - é um produto impuro de conflitos sociopolíticos passados e presentes. Quer se tenha uma visão sincrônica, global ou focalizada na Inglaterra (pré)vitoriana, continua clara a centralidade da luta de classes. De fato, desde meados do século 19, em todo o mundo, a adoção dos combustíveis fósseis como fonte primária de acumulação de capital tem sido imposta à força em reação à rejeição do trabalho e à apropriação da terra pelos trabalhadores e pelos colonizados; foi a combatividade dos explorados que levou o capital e os governos a introduzir primeiro o carvão e a seguir o petróleo e o gás. Como Andreas Malm (2016) e Timothy Mitchell (2013) mostram admiravelmente, a mudança do carvão para o vapor por volta de 1830 e do carvão para o petróleo por volta de 1920 é melhor entendida como projetos políticos que respondem aos interesses de classe do que como necessidades econômicas inerentes às duras leis do mercado.

O que talvez não seja suficientemente enfatizado por esses estudiosos é o fato de que as medidas postas em prática pelas classes dirigentes para domar o conflito implicaram não apenas mudanças sócio energéticas, mutações tecno organizacionais e reconfigurações geoespaciais, mas também uma socialização mais consistente das forças produtivas e uma crescente integração da natureza nas malhas do capital. Desta forma, a Terra - e não apenas a sociedade - tem se transformado cada vez mais em uma espécie de fábrica gigante. Hoje, uma quantidade crescente de relações sociais e naturais está direta ou indiretamente subjugada ao capital. Desde a instrução e a saúde da força de trabalho até as inúmeras externalidades positivas proporcionadas gratuitamente pelo meio ambiente, pelas plantas e pelos animais, quase nada hoje escapa à lógica do lucro. E o domínio da produção social sobre a reprodução natural está alterando o equilíbrio dos ecossistemas ao ponto de ameaçar as próprias condições de sobrevivência da humanidade. Portanto, o próprio internacionalismo requer uma revisão radical. Se, de fato, a globalização do comércio e da produção constituiu a base material do internacionalismo abolicionista e operário, e se a dimensão global do imperialismo representou a arena geopolítica do internacionalismo anticolonial, os efeitos planetários das crises ecológicas configuram toda a Terra como o teatro dos novos confrontos que estão ocorrendo. Esta mudança de paradigma, no entanto, não implica simplesmente uma ampliação de escala e uma complexificação do quadro de referência, mas sim uma verdadeira revolução em nossos hábitos de pensamento e de ação.

Aqui, então, está a primeira tese sócio-ontológica através da qual pode ser elaborado um internacionalismo adequado aos desafios colocados pelo Antropoceno: dentro da fábrica terrestre - que também é resultado de ciclos globais de conflitos anteriores - há não apenas grupos opostos de seres humanos lutando uns contra os outros, mas também seres não-humanos e não-vivos participando plenamente da tragédia histórica em curso. De fato, a destruição de ecossistemas, ambientes, natureza, etc. em uma parte do mundo produz cada ciclos retroativos, imprevisíveis, com efeitos catastróficos em regiões completamente diferentes. E os ambientes e entidades perturbados pela pegada humana são cada vez menos meros fundos inertes; sua violenta irrupção na cena política, como no caso da pandemia de Covid-19, muitas vezes polariza ainda mais os antagonismos, sem que, necessariamente, se abram cenários cor-de-rosa.

Paris, 1938: fundação da Quarta Internacional

Tese 2: Epistemologia: Composição sócio-ecológica

A inclusão do outro-que-humano, não apenas no tabuleiro político, como também enquanto tabuleiro político, vira a mesa de modo profundo. Entre outras coisas, uma tal reviravolta, de tal alcance geral, reveste uma grande importância para a velha questão da classe, de sua composição e organização. De acordo com uma "corrente quente" do marxismo que vai desde os escritos histórico-políticos de Marx até o operaismo italiano, não há classe sem luta de classes. Esse pressuposto atribui uma primazia ontológica à subjetivação política em relação às determinações socioeconômicas. Mario Tronti (2013) relatou esta epopeia antagônica, cujos protagonistas - trabalhadores e capital - encarnam as características místicas de uma filosofia da história culminante na sociedade sem classes. Se a convicção em um futuro radiante não parece mais apropriada, esta abordagem relacional, dinâmica e conflituosa da realidade de classe ainda é válida hoje. Contrários a qualquer visão sociologisante e/ou economicista, os operaístas jamais se conformaram com simples descrições empíricas destinadas a destrinçar a posição objetiva dos sujeitos dentro das estruturas sociais. Para eles, a transição do proletariado para a classe operária não aconteceu automaticamente com base em uma simples concentração em massa de trabalhadores dentro das grandes fábricas do século XIX. Ao contrário, foi o resultado de um salto inteiramente político-organizacional e autoconsciente. Para reconhecer e explicar uma tal mudança qualitativa, os operaístas forjaram o conceito de composição de classe, que esclarece as diferenças materiais e subjetivas que caracterizam a força de trabalho e que devem ser levadas em conta na questão da organização.

14/04/2023

FAUSTO GIUDICE
50 anos depois, Malika, morta aos 8 anos por um gendarme francês, renasce em um livro como um soco no estômago

Fausto Giudice, 11 de abril de 2023
Revisado por Helga Heidrich e Florence Carboni

Fausto Giudice (Roma, 1949) é um autor, tradutor e editor italiano que vive na Tunísia desde 2011. Em 2005 ele cofundou a rede de tradutores Tlaxcala, e em 2012 a editora workshop19, que se tornou em 2017 The Glocal Workshop/A Oficina Glocal. Ele é autor de dois livros de investigação publicados, tradutor de uma dúzia de outros, e de alguns manuscritos inéditos.

I.          Prelúdio

Sejamos francos: minha geração, a dos babyboomers do 1968, tem uma tendência geral de olhar com condescendência a geração d@s milenári@s, a de seus net@s. Ou pelo menos é assim que eles muitas vezes percebem nossas atitudes de veteranos.

Eu mesmo nunca julgo ninguém, e isso me custou muito caro no final. A traição e a calúnia são o lote comum dos humanos assim que formam uma sociedade. E entendo perfeitamente bem aqueles de meus jovens amigos que escolhem o caminho de um eremitério destecnologizado nas montanhas. Comecei a pensar nisso e a sonhar em criar comunidades rurais onde qualquer objeto eletrônico ou até mesmo elétrico seria deixado sob guarda na entrada.

Enquanto isso, eu passo, para meu crescente desespero, muito do tempo que me resta para viver diante de minhas telas e de meus teclados. Vinte e cinco anos atrás, minhas entranhas se revoltaram contra isso e começaram a sangrar. Consegui sobreviver, por um milagre inexplicável. O cirurgião que me operou pela segunda vez me disse que quando eu estava sobre a mesa e minha pressão arterial havia caído a zero, ele falara à equipe: “Vou comer um lanche, acho que quando voltar, ele terá passado”. E qual não foi sua surpresa quando ele voltou da cantina ao descobrir que o gringo polentero ainda estava respirando. Ele me explicou a hipótese médica de que minha hemorragia digestiva era síndrome de Mallory-Weiss. Isso foi uma grande ajuda para mim! Eu lhe disse que, na minha opinião, eu havia sido vítima da síndrome da revolução virtual no macintosh. O golpe que me deu o fim tinha sido um projeto totalmente desastroso de um bando de idiotas de Marselha, Avignon e arredores para fazer uma “caravana para a Palestina”. Descobri rapidamente que eles não só eram de uma ignorancia abismal, mas - e isto geralmente anda de mãos dadas - horrivelmente pretensiosos. Em suma, nenhuma caravana, nem para a Palestina, nem para qualquer outro lugar, exceto o hospital.

De volta há 12 anos no país onde cresci, sem televisão, sem computador (não existia), sem telefone celular (a linha fixa dos meus pais, que estava no meu quarto, quase nunca tocou), tive um choque, uma enxurrada de choques: na Medina, ruas inteiras de artesãos haviam desaparecido, na Rua Malta Sghira, todos os artesãos de ferro batido haviam sido substituídos por comerciantes de móveis mal feitos em madeira barata (as espreguiçadeiras que comprei não duraram um ano) e plástico, e no mercado central, os belos tomates vermelhos haviam dado lugar a tomates laranja sem sabor, de sementes híbridas feitas na UE, e destinados à UE. E oito dos doze milhões de habitantes do país tinham uma conta na fèsebuc. Como as assinaturas telefônicas são frequentemente associadas a uma conta no fèsbuc, muitos usuários (ou usados?) só conhecem a internet como fèsbuc, wadzapp, youtube, telegrama ou, agora, tiktok. E é o mesmo em todo lugar, de Medellín a Nablus, de Soweto a Jebel Lahmar [a favela mais antiga de Tunis].

Durante as campanhas eleitorais às quais assisti em meu “país de retorno”, não vi um único cartaz colado em um muro. Nenhuma das centenas de pessoas com menos de 45 anos que conheci nestes 12 anos jamais escreveu e preparou um panfleto, a ser distribuído às cinco da manhã na porta de alguma usina, ou às oito na porta de um colégio, ou ao meio-dia em algum mercado, ou às 18h na saída de uma loja de departamento.Ou seja, resumindo, passamos do collé-serré [pegado-apertado, uma maneira “suja” de bailar] de minha juventude para o copié-collé-posté-liké-buzzé [copiado-colado-postado-curtido-zumbado] de hoje. E as três dúzias de bastardos que estão tentando governar nosso planeta implodido estão trabalhando intensamente (ou melhor, fazendo seus escravos haiteque trabalharem duro) para garantir que não precisem mais de nós, ou seja tentando nos exterminarao mesmo tempo que preparam sua fuga, para a lua ou para o Marte ou para outro lugar. Há alguns anos atrás, um vigarista genial conseguiu vender títulos para terrenos na lua a israelenses que sentiram que o projeto sionista estava definitivamente falhando e e não tinham mais escolha: era preciso colonizar a lua. Lá, pelo menos, eles tinham certeza de que estariam em território garantido araberrein [limpo de árabes].

 II. Malika e Malika

Em 5 de junho de 2021, recebi uma notificação de Yezid Malika Jennifer:

Boa noite, senhor. Obrigada pela homenagem à minha tia Malika Yezid, morta em 1973 por gendarmes [emoji] boa noite”.

Em 7 de junho, segunda mensagem:


A pequena lá embaixo era Malika. Li seu livro e quando vi o nome Yezid, que também é meu nome, ele tocou meu coração. Porque esta história destruiu minha família. Minha avó me contou esta história. Todos estes abusos [policiais], estas famílias destroçadas, é horrível.  Todos estes nomes destas vítimas: nunca devemos esquecer. Tenha um bom dia”.  

Eis, a seguir, aquilo a que ela estava se referindo:

“No domingo 24 de junho, gendarmes em Fresnes à procura de um menino argelino de 14 anos que lhes tinha escapado, atacaram sua irmãzinha. Malika Yazid estava brincando no pátio do bairro provisório dos Groux, onde ela morava, em Fresnes. Ela foi até o apartamento para avisar seu irmão. Os gendarmes invadiram o apartamento.
Um deles, após ter dado um tapa em Malika, trancou-se em uma sala com ela para um “interrogatório”. Um quarto de hora depois, Malika deixou a sala e desmaiou no chão. Ela morreu quatro dias depois no hospital Salpétrière sem ter saído do coma.”

Estas são as onze linhas que dediquei à pequena Malika, esbofeteada até a morte por um gendarme aos oito anos de idade, naquele terrível verão de 1973, a seqüência mais dura das duas décadas de Arabicídios que reconstruí em meu livro com esse nome e publicado em 1992. Este livro tinha sido uma escolha óbvia, feita durante a obra sobre o anterior, Têtes de Turcs en France [Cabeças de turcos na França], publicada em 1989, que tinha tido bastante sucesso (mais de 25.000 exemplares vendidos, naquela época ainda foram lidos livros impressos em papel). Era dolorosamente óbvio que era impossível dedicar um único capítulo da Têtes de Turcs (do qual cada capitulo descrevia um exemplo de apartheid à francesa: trabalho, saúde, escola, moradia, etc.) ao que, naquele então, era chamado de “crimes racistas” pois haviam sido demasiadamente numerosos. Decidi portanto dedicar uma outra obra a esse tema. Durante dois anos, a sala da minha espelunca em Ménilmontant estava atravessada por uma prancha comprida colocada sobre duas cadeiras, na qual acumulavam-se as pastas amarelhas, por casos e por anos. Em suma, um prelúdio material (madeira, tinta, papel) dos quadros Excel do futuro próximo.

No final, eu tinha 350 desses casos em 21 anos, isto é 16,6 por ano, 1,3 por mês. Uma ninharia em comparada com os Negricídios nos EUA. Mas por favor, não estamos na ianquelândia, estamos no berço dos Direitos Humanos e do Cidadão, todos os homens nascem livres e iguais em direitos etc. etc., que acabamos de celebrar com grande pompa nos Champs-Élysées com o desfile de Jean-Paul Goude para o Bicentenário da Grande Revolução! Admito que durante estes dois anos de intenso trabalho de investigação, fui mais de uma vez ameaçado pela depressão e por um desejo de fuga, talvez não para a lua, mas em todo caso longe de Madame la France, como diziam os magrebinos (em referência à nota de 100 francos com a efígie da Liberdade com a mama nua que guia o povo).

Os momentos mais penosos foram os processos, onde pobres famílias árabes sofriam uma segunda morte, infligida pela frente dos enfarinhados: juízes, procuradores, advogados de defesa e réus la mano en la mano, e jurados - quando estavam em tribunal criminal de Júri - totalmente estupefatos e mudos. Eu nunca ouvi um único jurado dizer uma palavra durante um julgamento de três dias. Isso faz você se perguntar para que servem esses jurados “populares”?   

A família de Malika não precisou passar por isso: o caso foi rapidamente enterrado como de costume. Mas nada mais foi poupado. Jennifer Malika Fatima é uma das duas únicas sobreviventes da família, dizimada pela hogra (desprezo), a droga, a delinquência e, por trás de tudo isso, o chamado “transit”. O bairro de “transit” de Les Groux, em Fresnes, a um passo da prisão (“prático”, diz seu tio Nacer, o único outro sobrevivente, que teve um gostinho dela), uma situação temporária que durou para sempre. Abandonada ao seu destino com sua avó após o suicídio de sua mãe, ela foi colocada em uma família de acolhimento gaulesa pura aos 18 meses. Ela ficou lá por trinta anos e finalmente escapou a seu destino após ter escapado todos os perigos habituais que esperam as crianças das classes perigosas racializadas.

E agora, eis que, no dia 7 de abril, o SEU LIVRO saiu! Um verdadeiro evento! Eu não quero estragá-lo, mas apenas dizer o seguinte: este livro é a melhor realização que conheçi até hoje do desejo que tinha formulado para mim mesmo quando meu próprio livro Arabicides foi publicado. Eu não estava satisfeito com o resultado final do meu trabalho, sonhava com o livro A Sangue Frio de Truman Capote, que havia visitado e conversado com dois jovens assassinos no corredor da morte durante anos e dessa relação havia produzido uma obra-prima. E eu gostaria de ter “cozinhado” alguns arábicidas e seus parentes, mas não consegui encontrar nenhum. Mas eu não era Truman Capote, La Découverte não era uma grande casa nova-iorquina que pudesse pagar detetives, eu era apenas um obscuro jornalista italiano “islamo-esquerdista” antes da invenção deste termo (“Ah! Você fala muito bem francês” – “Você o diz, cara de pau, o francês é nosso espólio de guerra”), editado por uma editora com um passado glorioso (François Maspero) mas um presente crítico (foi mais tarde comprada por uma multinacional), em suma, eu disse a mim mesmo que meu trabalho era um serviço mínimo a prestar às gerações futuras que iriam querer saber mais sobre esta história e que gostariam de desenterrá-la.

Foi exatamente o que aconteceu trinta a cinqüenta anos depois. É sempre a terceira geração que arranca o passado do esquecimento: é verdade para os armênios, para os judeus da Europa e para todos os outros. É a geração d@s net@s das vítimas de crimes estatais maciços, concentrados ou diluídos que trazem à tona experiências traumáticas coletivas e as transmite para a próxima. O livro de Jennifer Malika Fatima é, que eu saiba, o primeiro desse gênero, construído sobre as memórias, conversas e os incríveis arquivos cuidadosamente preservados e arquivados por sua avó, uma cabila (supostamente) analfabeta.

Não se trata de uma tese de doutorado com formato acadêmico, que geralmente é ilegível para uma pessoa comum, que por ventura a quisesse ler. O livro de Malika Fatima é um soco que você leva na barriga. Assim que o recebi, o engoli inteiro e o terminei em duas horas. Depois me refugiei atordoado em uma ruminação de algumas semanas. O tempo de digerir. Este texto é o resultado da minha digestão, pois prometi a mim mesmo publicar esta resenha não convencional para o lançamento do livro dia 7 de abril.

O livro, pelo qual Jennifer Malika Fatima foi apoiada de forma fraterna e respeitosa pela escritora Asya Djoulaït para a formatação do manuscrito e pelo historiador Sami Ouchane para a apresentação dos documentos extraídos dos arquivos - que não tentaram impor-lhe uma formatação acadêmica -, é magnificamente posfaciado pela querida Rachida Brahim, outra estrelinha brilhante das gerações vindouras a quem eu havia dito a mim mesmo que meu livro seria capaz de falar.
O livro beneficiou-se de uma edição cuidadosa e exemplar de uma jovem editora feminista em Marselha,
Hors d'atteinte[Fora de alcance], que descobri com deleite, e cujo catálogo perturbou minhas glândulas salivares, ao ponto de amanhã ter uma consulta com meu dentista para a remoção de um cisto mucoso.

Parabém Senhoras, vocês me curaram de qualquer tentação de condescendência. Acho que pertencemos à mesma espécie: a dos humanos que não sabem do que se está falando quando alguem diz: pensões. Vou terminar com esta frase de Nietzsche que concluiu meu livro: “O homem de longa memória é o homem do futuro”. Homem, é claro, tomado no sentido de Mensch, ser humano, em alemão e yiddish.

Portanto, não hesite e corra para sua livraria local (esqueça Amazonzon*, por favor!) e encomende o livro se você puder ler em francês (ele é distribuído pelo Harmonia Mundi). Caso contrário, você terá que esperar por uma versão em português. Trabalhamos nele. Qualquer editora interessada pode escrever para tlaxint[at]gmail.com.

Nota

*Zonzon é uma antiga palavra francesa que significa zumbido, mas na gíria francesa significa prisão (por aférese de prison) como substantivo, e louco como adjetivo. E de fato, o império de Jeff Bezos é uma prisão zumbidora.

Papel de grande formato 15 euros - Eletrônico 11,99 euros



 

 

13/11/2022

“Cantata Sete Povos”: a saga das missões jesuíticas na música de Raul Ellwanger
Documentário de Omar L. de Barros Filho

Documentário apresenta obra musical de Raul Ellwanger dedicada à saga guarani e às missões jesuíticas no Rio Grande do Sul

A estreia do primeiro episódio da série documental “Cantata Sete Povos” acontecerá em uma sessão especial da Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana, na próxima quarta-feira (16/11), às 19h00, em Porto Alegre.  

 

O filme aborda, de forma poética, a construção da utópica sociedade proposta por jesuítas europeus aos guaranis, que povoaram, originariamente, o território gaúcho por mais de um milênio. Finda a experiência nos séculos 17 e 18, sobreveio a era do apagamento da memória missioneira, a ocultação dos fatos e o genocídio indígena.

 O documentário em tela está alicerçado sobre a obra musical do consagrado compositor Raul Ellwanger, criador da “Cantata Sete Povos” - uma suíte popular de 12 canções em diferentes estilos - que narra, segundo o autor, a saga guarani em busca da Terra-Sem-Males” e sua relação com os religiosos europeus. O episódio inicial da série, concluído no início de outubro, mostra o músico em diferentes situações em seu trabalho artístico e criativo. 

Assim, Ellwanger interpreta “Invocação” diante do altar da Igreja Santa Cecília, padroeira dos músicos. Visita, ainda, uma aldeia guarani em Viamão, onde canta “Bate o Enxadão” na Opy (casa de reza). O compositor conversa, em Porto Alegre, com pesquisadores da história e do legado guarani e jesuíta. E viaja ao sítio arqueológico da missão de S. Miguel, onde revela as razões que o levaram a compor a “Cantata Sete Povos”, gênero originado durante o período barroco na Europa, depois referenciado em ações emancipacionistas na América Hispânica.

Omar L. de Barros Filho, roteirista e diretor do documentário, explica que a proposta cinematográfica de “Cantata Sete Povos” está apoiada “em uma narrativa ágil, que oferece ao espectador uma viagem musical ao passado, em busca de respostas a questões que ainda permanecem vivas e inquietantes. No filme, o personagem central e mediador do processo é o compositor e músico Raul Ellwanger”. 

“Cantata Sete Povos” é uma realização do Instituto Latinoamerica, com 21 anos de atuação cultural e educativa, com produção da Kino Kaos Filmes e Poética Produções.

Notas Sobre “Cantata Sete Povos”

Episódio 1

Omar Luiz de Barros Filho

Roteirista e Diretor

Documentário formatado para a produção de uma série de quatro curtas-metragens musicais e on the road, a proposta cinematográfica de “Cantata Sete Povos” foi um desafio em minha carreira. Mas, com o primeiro capítulo já finalizado e pronto para a estreia na internet, observo que o filme propõe uma narrativa contemporânea e ágil, que busca conduzir o espectador em uma viagem poética ao já acontecido, à procura de respostas para questões que ainda  permanecem vivas na atualidade. 

O mediador do processo é o compositor gaúcho Raul Ellwanger, que garimpou sua inspiração musical nas raízes barrocas da catequese jesuítica, nas quais encontrou o gênero Cantata. Em sua origem, as canções originais ou vieram da Europa ou foram compostas aqui na América do Sul por religiosos jesuítas, durante os séculos 16 e 17. Eram, então, utilizadas como instrumento de aculturamento, conversão e pacificação dos povos originários, como os guaranis, que habitavam o Rio Grande do Sul há mais de mil anos.

Focado no período do esplendor das Missões, o consagrado Ellwanger compôs uma suíte popular de 12 canções originais em diferentes estilos - que narram a saga guarani em busca da utópica Terra-Sem-Males e sua relação com os religiosos europeus. O episódio inicial da série, concluído no início de outubro, mostra o músico em diferentes situações em seu trabalho artístico e criativo. 

No primeiro episódio, três câmeras em movimento dão suporte ao filme, que documenta os cenários nos quais Ellwanger transita e canta. Na antiga missão de São Miguel, por exemplo, o documentário apresenta ao espectador a visão do terreno onde, antigamente, circulavam os guaranis e os frades. Por lá também passaram os bandeirantes e os encomenderos, os principais inimigos da obra social e religiosa em construção nas reduções jesuíticas. 

17/04/2022

Declaração por ocasião do Dia do Prisioneiro Palestino (17 de abril)

O Dia do Prisioneiro Palestino que cai em 17 de abril é comemorado este ano, em meio a uma brutal campanha das autoridades de ocupação israelenses contra todo o povo palestino, contra os combatentes da liberdade mantidos em cativeiro nas prisões israelenses.

Estima-se que ainda existam mais de 4.400 prisioneiros de guerra nas prisões de ocupação israelense, incluindo 33 mulheres e meninas, cerca de 160 crianças menores de 18 anos e mais de 500 detentos administrativos, incluindo 8 deputados eleitos. Pelo menos 600 prisioneiros de guerra sofrem de doenças terminais ou graves, como o câncer, e paralisia parcial ou total. O tratamento israelense de prisioneiros de guerra e prisioneiros administrativos palestinos pode constituir crimes de guerra e crimes contra a humanidade se devidamente investigados pelo TPI.

Israel continua a negar aos prisioneiros de guerra palestinos e detentos seus direitos básicos garantidos pelas convenções e normas internacionais, e continua com suas medidas e práticas repressivas que incluem o confinamento solitário, a tortura e o uso da força que se intensificou significativamente desde a fuga de 6 prisioneiros de guerra palestinos do centro penitenciário de alta segurança de Gilboa.

 

11/04/2022

MICHAEL HUDSON
O euro que o dólar comeu

Michael Hudson, Site do autor, 7/4/2022
Traduzido pelo Coletivo de Tradutores Vila Mandinga

Agora já se pode ver com clareza que a escalada atual da Nova Guerra Fria foi planejada há mais de um ano, com estratégia séria associada ao plano dos EUA para bloquear o gasoduto Nord Stream 2, como parte de seu objetivo de impedir a Europa Ocidental (a “OTAN”) de buscar prosperidade mediante comércio e investimentos mútuos com China e Rússia.

Como o presidente Biden e os relatórios de segurança nacional dos EUA anunciaram, a China estava definida como o principal inimigo. Apesar do papel útil que a China teve, ao permitir que os EUA corporativos reduzissem salários do trabalho, enquanto se desindustrializava a economia dos EUA em favor da industrialização chinesa, o crescimento da China foi apresentado como o Terror Supremo: alguém que alcançava a prosperidade pela via do socialismo.

A industrialização socialista sempre foi percebida como o grande inimigo da economia rentista que tomou conta da maioria das nações no século desde o fim da Primeira Guerra Mundial, e especialmente desde a década de 1980.

O resultado hoje é um choque de sistemas econômicos – industrialização socialista versus capitalismo financeiro neoliberal.

Isso faz da Nova Guerra Fria contra a China um ato implícito de deflagração do que ameaça ser uma longa Terceira Guerra Mundial. A estratégia dos EUA é afastar os aliados econômicos mais prováveis da China, especialmente Rússia, Ásia Central, Sul da Ásia e Leste Asiático. A questão era por onde começar a forçar o racha e o isolamento.

A Rússia pareceu ser a maior oportunidade para começar o racha, distanciando-a da China e também da eurozona da OTAN. Elaborou-se uma sequência de sanções cada vez mais severas contra a Rússia – que se esperava que fossem fatais –, para impedir que a OTAN negociasse com ela. Só faltava, para desencadear o terremoto geopolítico, um casus belli.

Não foi difícil arranjar o ‘item’ que faltava. A escalada da Nova Guerra Fria poderia ter sido lançada no Oriente Próximo – por resistência à apropriação dos campos de petróleo iraquianos pelos EUA, ou contra o Irã e os países que o ajudam a sobreviver economicamente, ou na África Oriental. Planos para golpes, revoluções coloridas e mudança de regime foram elaborados para todas essas áreas, e o exército dos EUA na África foi construído com extrema rapidez nos últimos dois anos. 

Leia mais 


 

FAUSTO GIUDICE
Bucha, uma Timişoara do século 21

Fausto Giudice, Tlaxcala, 9/4/2022
Traduzido pelo
Coletivo de Tradutores Vila Mandinga

Dia 1º de abril de 2022, o prefeito de Bucha, subúrbio residencial de 36 mil moradores a noroeste de Kiev, anuncia que a cidade teria sido “liberada” no dia anterior, 31 de março, dos ocupantes russos. Ao mesmo tempo, a polícia ucraniana anunciou que havia lançado uma caçada aos “sabotadores” e “agentes russos disfarçados de civis”. Dia 2 de abril, o advogado ucraniano Ilya Novikov publicou, em sua página de Facebook, um vídeo extraído de uma página ucraniana em Telegram, com um minuto e nove segundos de duração, mostrando um comboio de tanques ucranianos descendo uma rua em Bucha. Doze corpos podem ser contados, um dos quais tem as mãos atadas às costas com uma bandagem branca.


Nas horas que se seguiram, toda a “midiasocialesfera”, e depois a grande mídia, enlouqueceram. “Os russos cometeram crimes de guerra em Bucha, massacraram 300 civis”. Ninguém viu os tais 300 cadáveres. Algumas fotos mostram sacos pretos dos quais se diz que conteriam cadáveres. Por mais que se deseje acreditar, digamos assim, que contivessem cadáveres, nem assim se tem qualquer informação sobre quando e como aquelas pessoas teriam morrido. As fotos e vídeos sucederam-se num caos total: o mesmo suposto cadáver aparece em fotos diferentes em lugares diferentes. Os corpos aparecem, desaparecem, reaparecem com detalhes diferentes. Algumas fotos mostram corpos com as mãos atadas atrás das costas, outras com braçadeiras brancas nos braços. Durante o mês em que as tropas russas ocuparam Bucha e arredores, os civis foram instruídos a usar braçadeiras brancas para mostrar que eram civis não hostis. Os civis, militares e paramilitares ucranianos usavam braçadeiras azuis.

Os militares russos, de acordo com a narrativa dominante, estariam matando civis que não lhes eram hostis. ‘Logo’ – rezaria a ‘conclusão’ – seriam tão loucos quanto seu líder, Putin, o Grande Satã de 2022.

Depois e ao mesmo tempo que a mídia e as redes sociais, entraram no baile também os políticos: Joe Biden, Ursula von der Leyen, Josep Borrell, todos denunciam o “crime de guerra de Bucha”. Foi negado à Rússia o direito de falar e votar no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Zelensky, o “servo do povo”, eterno inabalável herói de telenovela sem fim, pede um “Tribunal de Nuremberg para Putin”.

E finalmente, lá está o próprio Papa, em cena digna de Nanni Moretti, brandindo e beijando uma bandeira ucraniana “da cidade martirizada de Bucha”, durante uma cerimônia na qual ele dá ovos de Páscoa às crianças ucranianas.

Nenhum meio de comunicação que publicou fotos ou o vídeo da cena explicou o que estava escrito na bandeira: “Quarta Centúria Cossaca de Maidan”.

“Centúria” (“sotnya”) era a unidade básica das tropas cossacas dos vários exércitos em que serviam. Durante o que a Rádio Europa Livre chamou de “Euromaidan” de 2013-2014, o serviço de segurança organizado pelo político, inicialmente neonazista conhecido, depois cata-vento, Andriy Parubiy, foi estruturado em grupos que levavam nomes poéticos, desse tipo, evocando o “passado glorioso” ucraniano; em outras palavras, evocando a luta contra o “Judeo-Bolshevismo”.

Mas e quanto à “Bucha”. Por que Bucha? Porque, em inglês, Bucha inevitavelmente evocaria butcher, “açougueiro”? E quem seria o açougueiro-em-chefe de Bucha? Há duas teorias: para uns, seria Azatbek Asanbekovitch Omurbekov; para outros, Serhii Korotkykh.