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19/05/2023

DAVIDE GALLO LASSERE
Nove teses sobre o internacionalismo hoje

Davide Gallo Lassere, euronomade.info/, 31-3-2023
Traduzido por  Florence Carboni, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Davide Gallo Lassere (1985) é um filósofo italiano que recebeu seu doutorado de Nanterre e Turim com uma tese sobre "Dinheiro e capitalismo. De Marx para as moedas do comum" em 2015. Ele é Professor de Política Internacional e Chefe de Admissões no Instituto da Universidade de Londres, em Paris. PublicaõesFB

Nós também vimos primeiro o desenvolvimento capitalista e, a seguir as lutas dos trabalhadores. Isto é um erro. Devemos reverter o problema, mudar o sinal, partir do princípio: e o princípio é a luta da classe trabalhadora.

(Mario Tronti)

 

Desde o século XIX, o internacionalismo tem sido um dos pilares fundamentais dos movimentos revolucionários, sejam eles antiescravatura, operários, anticoloniais ou outros. O internacionalismo, enquanto extensão do campo de luta além do Estado-nação, é uma das três principais características dos movimentos comunistas, juntamente com a abolição da propriedade privada e o desmantelamento da forma Estado. 

Londres, 1864: fundação da primeira International

Entretanto, se considerarmos a vastidão e a importância da história dos movimentos inter ou transnacionais (de acordo ao modo como se desdobram - se entre ou além das fronteiras nacionais), ficamos surpresos com a riqueza do material empírico e historiográfico em comparação com uma certa pobreza em teorização [1]. De fato, pode-se argumentar que o internacionalismo, enquanto fenômeno histórico e político, é fundamentalmente sub-teorizado. Portanto, poderíamos perguntar até que ponto é possível desenvolver, se não uma filosofia política, ao menos uma teoria social e política do internacionalismo? Ou, ao contrário, indo mais longe, imaginar que existe uma ontologia e uma epistemologia específicas dos movimentos inter e/ou transnacionais? E então, para além das peculiaridades nominais, qual ou quais denominações são mais apropriadas: internacionalismo ou transnacionalismo? internacionalismo subnacional ou transnacional (Van der Linden, 2010)? Local ou global (Antentas, 2015)? Forte ou fraco (Antentas, 2022)? Material ou simbólico? Revolucionário ou burocrático? Comunista ou liberal? Operário? Feminista? Antirracista? Ecologista? O internacionalismo em si mesmo é um meio ou um fim? E, é claro, a lista poderia continuar [2]...

 Paris, 14 de julho de 1889: fundação da Segunda Internacional

Contudo, o que é altamente significativo, hoje mais do que nunca - em um momento de grande crise econômica e social, quando os ventos de guerra entre as potências mundiais estão soprando novamente, em um mundo pós-pandêmico e superaquecido - é o fato de que a questão estratégica do internacionalismo está voltando à vanguarda dentro dos movimentos sociais e políticos: há uma consciência crescente de que estas forças hostis não podem ser derrotadas lutando em ordem aleatória, cada homem por si, confinado dentro do perímetro de nossos Estados-nação, ou permanecendo ancorado nos territórios, implementando exclusivamente práticas micropolíticas. É necessário poder intervir no mesmo nível destes processos, que são por definição globais e planetários. Para isso, devemos ser capazes de desenvolver raciocínios e práticas que estejam à altura dos desafios colocados pela geopolítica, mecanismos de governança, do mercado global às mudanças climáticas etc. Mas, na história dos movimentos radicais e revolucionários, tais raciocínios e práticas são chamados de internacionalismo e, em menor medida, de cosmopolítica [3].

É por isso que hoje parece mais importante do que nunca repensar o internacionalismo. A boa notícia é que não estamos começando do zero. Na verdade, os anos 2010 foram pontuados pela erupção de numerosos protestos e revoltas contra as consequências radicalmente antissociais e antidemocráticas das diversas crises (econômica, política, sanitária, climática, etc.). A má notícia é que a década atual, e as que virão, são, e serão cada vez mais, perturbadas pela intensificação dos confrontos geopolíticos e pelo aprofundamento das possibilidades de uma catástrofe ecológica. Ciclos futuros de luta surgirão em um mundo cada vez mais perturbado por claras contradições e antagonismos. E eles serão forçados a operar neste contexto modificado. O que segue, portanto, são apenas nove teses simples, elaboradas a partir de algumas experiências francesas e europeias, com o objetivo de destacar o que poderia ser considerado os pontos fortes e fracos dos movimentos globais dos anos 2010. Elas pretendem ser uma pequena e parcial contribuição ao debate político imanente a esses movimentos, mas também uma tentativa preliminar e não exaustiva de enquadrar a questão do internacionalismo de forma original, de modo a reler em luz de fundo a história bicentenária das lutas inter ou transnacionais, desde as ressonâncias globais de 1789 até o ciclo altermundialista, passando pelas datas simbólicas de 1848, 1917 e 1968 [4].

 

 Moscou, 1919: fundação da Terceira Internacional

Tese 1: Ontologia I: Fábrica Terrestre

As lutas sociais e políticas estão no centro da transição para o Antropoceno. Enquanto motores do desenvolvimento capitalista, elas são cruciais para compreender os processos que definem as múltiplas crises ecológicas contemporâneas. Dito de outra forma: a explosão das emissões de CO2 na atmosfera e a progressiva destruição da natureza estão intimamente ligadas às lutas de classe e anticoloniais; são um "efeito colateral" da resposta capitalista aos impasses induzidos pelas práticas de resistência e de contrasujeição de subalternos. O aquecimento global, por exemplo, é o resultado de antagonismos entre grupos humanos e, como tal, alimenta ainda mais as tensões sociais, econômicas e políticas. Esta é a ideia básica de parte da historiografia ecomarxista, seu diagnóstico do presente e suas perspectivas de ruptura futura. A mudança de temperatura na Terra - provocada principalmente pelo uso capitalista de combustíveis fósseis - é um produto impuro de conflitos sociopolíticos passados e presentes. Quer se tenha uma visão sincrônica, global ou focalizada na Inglaterra (pré)vitoriana, continua clara a centralidade da luta de classes. De fato, desde meados do século 19, em todo o mundo, a adoção dos combustíveis fósseis como fonte primária de acumulação de capital tem sido imposta à força em reação à rejeição do trabalho e à apropriação da terra pelos trabalhadores e pelos colonizados; foi a combatividade dos explorados que levou o capital e os governos a introduzir primeiro o carvão e a seguir o petróleo e o gás. Como Andreas Malm (2016) e Timothy Mitchell (2013) mostram admiravelmente, a mudança do carvão para o vapor por volta de 1830 e do carvão para o petróleo por volta de 1920 é melhor entendida como projetos políticos que respondem aos interesses de classe do que como necessidades econômicas inerentes às duras leis do mercado.

O que talvez não seja suficientemente enfatizado por esses estudiosos é o fato de que as medidas postas em prática pelas classes dirigentes para domar o conflito implicaram não apenas mudanças sócio energéticas, mutações tecno organizacionais e reconfigurações geoespaciais, mas também uma socialização mais consistente das forças produtivas e uma crescente integração da natureza nas malhas do capital. Desta forma, a Terra - e não apenas a sociedade - tem se transformado cada vez mais em uma espécie de fábrica gigante. Hoje, uma quantidade crescente de relações sociais e naturais está direta ou indiretamente subjugada ao capital. Desde a instrução e a saúde da força de trabalho até as inúmeras externalidades positivas proporcionadas gratuitamente pelo meio ambiente, pelas plantas e pelos animais, quase nada hoje escapa à lógica do lucro. E o domínio da produção social sobre a reprodução natural está alterando o equilíbrio dos ecossistemas ao ponto de ameaçar as próprias condições de sobrevivência da humanidade. Portanto, o próprio internacionalismo requer uma revisão radical. Se, de fato, a globalização do comércio e da produção constituiu a base material do internacionalismo abolicionista e operário, e se a dimensão global do imperialismo representou a arena geopolítica do internacionalismo anticolonial, os efeitos planetários das crises ecológicas configuram toda a Terra como o teatro dos novos confrontos que estão ocorrendo. Esta mudança de paradigma, no entanto, não implica simplesmente uma ampliação de escala e uma complexificação do quadro de referência, mas sim uma verdadeira revolução em nossos hábitos de pensamento e de ação.

Aqui, então, está a primeira tese sócio-ontológica através da qual pode ser elaborado um internacionalismo adequado aos desafios colocados pelo Antropoceno: dentro da fábrica terrestre - que também é resultado de ciclos globais de conflitos anteriores - há não apenas grupos opostos de seres humanos lutando uns contra os outros, mas também seres não-humanos e não-vivos participando plenamente da tragédia histórica em curso. De fato, a destruição de ecossistemas, ambientes, natureza, etc. em uma parte do mundo produz cada ciclos retroativos, imprevisíveis, com efeitos catastróficos em regiões completamente diferentes. E os ambientes e entidades perturbados pela pegada humana são cada vez menos meros fundos inertes; sua violenta irrupção na cena política, como no caso da pandemia de Covid-19, muitas vezes polariza ainda mais os antagonismos, sem que, necessariamente, se abram cenários cor-de-rosa.

Paris, 1938: fundação da Quarta Internacional

Tese 2: Epistemologia: Composição sócio-ecológica

A inclusão do outro-que-humano, não apenas no tabuleiro político, como também enquanto tabuleiro político, vira a mesa de modo profundo. Entre outras coisas, uma tal reviravolta, de tal alcance geral, reveste uma grande importância para a velha questão da classe, de sua composição e organização. De acordo com uma "corrente quente" do marxismo que vai desde os escritos histórico-políticos de Marx até o operaismo italiano, não há classe sem luta de classes. Esse pressuposto atribui uma primazia ontológica à subjetivação política em relação às determinações socioeconômicas. Mario Tronti (2013) relatou esta epopeia antagônica, cujos protagonistas - trabalhadores e capital - encarnam as características místicas de uma filosofia da história culminante na sociedade sem classes. Se a convicção em um futuro radiante não parece mais apropriada, esta abordagem relacional, dinâmica e conflituosa da realidade de classe ainda é válida hoje. Contrários a qualquer visão sociologisante e/ou economicista, os operaístas jamais se conformaram com simples descrições empíricas destinadas a destrinçar a posição objetiva dos sujeitos dentro das estruturas sociais. Para eles, a transição do proletariado para a classe operária não aconteceu automaticamente com base em uma simples concentração em massa de trabalhadores dentro das grandes fábricas do século XIX. Ao contrário, foi o resultado de um salto inteiramente político-organizacional e autoconsciente. Para reconhecer e explicar uma tal mudança qualitativa, os operaístas forjaram o conceito de composição de classe, que esclarece as diferenças materiais e subjetivas que caracterizam a força de trabalho e que devem ser levadas em conta na questão da organização.