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19/05/2023

DAVIDE GALLO LASSERE
Nove teses sobre o internacionalismo hoje

Davide Gallo Lassere, euronomade.info/, 31-3-2023
Traduzido por  Florence Carboni, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Davide Gallo Lassere (1985) é um filósofo italiano que recebeu seu doutorado de Nanterre e Turim com uma tese sobre "Dinheiro e capitalismo. De Marx para as moedas do comum" em 2015. Ele é Professor de Política Internacional e Chefe de Admissões no Instituto da Universidade de Londres, em Paris. PublicaõesFB

Nós também vimos primeiro o desenvolvimento capitalista e, a seguir as lutas dos trabalhadores. Isto é um erro. Devemos reverter o problema, mudar o sinal, partir do princípio: e o princípio é a luta da classe trabalhadora.

(Mario Tronti)

 

Desde o século XIX, o internacionalismo tem sido um dos pilares fundamentais dos movimentos revolucionários, sejam eles antiescravatura, operários, anticoloniais ou outros. O internacionalismo, enquanto extensão do campo de luta além do Estado-nação, é uma das três principais características dos movimentos comunistas, juntamente com a abolição da propriedade privada e o desmantelamento da forma Estado. 

Londres, 1864: fundação da primeira International

Entretanto, se considerarmos a vastidão e a importância da história dos movimentos inter ou transnacionais (de acordo ao modo como se desdobram - se entre ou além das fronteiras nacionais), ficamos surpresos com a riqueza do material empírico e historiográfico em comparação com uma certa pobreza em teorização [1]. De fato, pode-se argumentar que o internacionalismo, enquanto fenômeno histórico e político, é fundamentalmente sub-teorizado. Portanto, poderíamos perguntar até que ponto é possível desenvolver, se não uma filosofia política, ao menos uma teoria social e política do internacionalismo? Ou, ao contrário, indo mais longe, imaginar que existe uma ontologia e uma epistemologia específicas dos movimentos inter e/ou transnacionais? E então, para além das peculiaridades nominais, qual ou quais denominações são mais apropriadas: internacionalismo ou transnacionalismo? internacionalismo subnacional ou transnacional (Van der Linden, 2010)? Local ou global (Antentas, 2015)? Forte ou fraco (Antentas, 2022)? Material ou simbólico? Revolucionário ou burocrático? Comunista ou liberal? Operário? Feminista? Antirracista? Ecologista? O internacionalismo em si mesmo é um meio ou um fim? E, é claro, a lista poderia continuar [2]...

 Paris, 14 de julho de 1889: fundação da Segunda Internacional

Contudo, o que é altamente significativo, hoje mais do que nunca - em um momento de grande crise econômica e social, quando os ventos de guerra entre as potências mundiais estão soprando novamente, em um mundo pós-pandêmico e superaquecido - é o fato de que a questão estratégica do internacionalismo está voltando à vanguarda dentro dos movimentos sociais e políticos: há uma consciência crescente de que estas forças hostis não podem ser derrotadas lutando em ordem aleatória, cada homem por si, confinado dentro do perímetro de nossos Estados-nação, ou permanecendo ancorado nos territórios, implementando exclusivamente práticas micropolíticas. É necessário poder intervir no mesmo nível destes processos, que são por definição globais e planetários. Para isso, devemos ser capazes de desenvolver raciocínios e práticas que estejam à altura dos desafios colocados pela geopolítica, mecanismos de governança, do mercado global às mudanças climáticas etc. Mas, na história dos movimentos radicais e revolucionários, tais raciocínios e práticas são chamados de internacionalismo e, em menor medida, de cosmopolítica [3].

É por isso que hoje parece mais importante do que nunca repensar o internacionalismo. A boa notícia é que não estamos começando do zero. Na verdade, os anos 2010 foram pontuados pela erupção de numerosos protestos e revoltas contra as consequências radicalmente antissociais e antidemocráticas das diversas crises (econômica, política, sanitária, climática, etc.). A má notícia é que a década atual, e as que virão, são, e serão cada vez mais, perturbadas pela intensificação dos confrontos geopolíticos e pelo aprofundamento das possibilidades de uma catástrofe ecológica. Ciclos futuros de luta surgirão em um mundo cada vez mais perturbado por claras contradições e antagonismos. E eles serão forçados a operar neste contexto modificado. O que segue, portanto, são apenas nove teses simples, elaboradas a partir de algumas experiências francesas e europeias, com o objetivo de destacar o que poderia ser considerado os pontos fortes e fracos dos movimentos globais dos anos 2010. Elas pretendem ser uma pequena e parcial contribuição ao debate político imanente a esses movimentos, mas também uma tentativa preliminar e não exaustiva de enquadrar a questão do internacionalismo de forma original, de modo a reler em luz de fundo a história bicentenária das lutas inter ou transnacionais, desde as ressonâncias globais de 1789 até o ciclo altermundialista, passando pelas datas simbólicas de 1848, 1917 e 1968 [4].

 

 Moscou, 1919: fundação da Terceira Internacional

Tese 1: Ontologia I: Fábrica Terrestre

As lutas sociais e políticas estão no centro da transição para o Antropoceno. Enquanto motores do desenvolvimento capitalista, elas são cruciais para compreender os processos que definem as múltiplas crises ecológicas contemporâneas. Dito de outra forma: a explosão das emissões de CO2 na atmosfera e a progressiva destruição da natureza estão intimamente ligadas às lutas de classe e anticoloniais; são um "efeito colateral" da resposta capitalista aos impasses induzidos pelas práticas de resistência e de contrasujeição de subalternos. O aquecimento global, por exemplo, é o resultado de antagonismos entre grupos humanos e, como tal, alimenta ainda mais as tensões sociais, econômicas e políticas. Esta é a ideia básica de parte da historiografia ecomarxista, seu diagnóstico do presente e suas perspectivas de ruptura futura. A mudança de temperatura na Terra - provocada principalmente pelo uso capitalista de combustíveis fósseis - é um produto impuro de conflitos sociopolíticos passados e presentes. Quer se tenha uma visão sincrônica, global ou focalizada na Inglaterra (pré)vitoriana, continua clara a centralidade da luta de classes. De fato, desde meados do século 19, em todo o mundo, a adoção dos combustíveis fósseis como fonte primária de acumulação de capital tem sido imposta à força em reação à rejeição do trabalho e à apropriação da terra pelos trabalhadores e pelos colonizados; foi a combatividade dos explorados que levou o capital e os governos a introduzir primeiro o carvão e a seguir o petróleo e o gás. Como Andreas Malm (2016) e Timothy Mitchell (2013) mostram admiravelmente, a mudança do carvão para o vapor por volta de 1830 e do carvão para o petróleo por volta de 1920 é melhor entendida como projetos políticos que respondem aos interesses de classe do que como necessidades econômicas inerentes às duras leis do mercado.

O que talvez não seja suficientemente enfatizado por esses estudiosos é o fato de que as medidas postas em prática pelas classes dirigentes para domar o conflito implicaram não apenas mudanças sócio energéticas, mutações tecno organizacionais e reconfigurações geoespaciais, mas também uma socialização mais consistente das forças produtivas e uma crescente integração da natureza nas malhas do capital. Desta forma, a Terra - e não apenas a sociedade - tem se transformado cada vez mais em uma espécie de fábrica gigante. Hoje, uma quantidade crescente de relações sociais e naturais está direta ou indiretamente subjugada ao capital. Desde a instrução e a saúde da força de trabalho até as inúmeras externalidades positivas proporcionadas gratuitamente pelo meio ambiente, pelas plantas e pelos animais, quase nada hoje escapa à lógica do lucro. E o domínio da produção social sobre a reprodução natural está alterando o equilíbrio dos ecossistemas ao ponto de ameaçar as próprias condições de sobrevivência da humanidade. Portanto, o próprio internacionalismo requer uma revisão radical. Se, de fato, a globalização do comércio e da produção constituiu a base material do internacionalismo abolicionista e operário, e se a dimensão global do imperialismo representou a arena geopolítica do internacionalismo anticolonial, os efeitos planetários das crises ecológicas configuram toda a Terra como o teatro dos novos confrontos que estão ocorrendo. Esta mudança de paradigma, no entanto, não implica simplesmente uma ampliação de escala e uma complexificação do quadro de referência, mas sim uma verdadeira revolução em nossos hábitos de pensamento e de ação.

Aqui, então, está a primeira tese sócio-ontológica através da qual pode ser elaborado um internacionalismo adequado aos desafios colocados pelo Antropoceno: dentro da fábrica terrestre - que também é resultado de ciclos globais de conflitos anteriores - há não apenas grupos opostos de seres humanos lutando uns contra os outros, mas também seres não-humanos e não-vivos participando plenamente da tragédia histórica em curso. De fato, a destruição de ecossistemas, ambientes, natureza, etc. em uma parte do mundo produz cada ciclos retroativos, imprevisíveis, com efeitos catastróficos em regiões completamente diferentes. E os ambientes e entidades perturbados pela pegada humana são cada vez menos meros fundos inertes; sua violenta irrupção na cena política, como no caso da pandemia de Covid-19, muitas vezes polariza ainda mais os antagonismos, sem que, necessariamente, se abram cenários cor-de-rosa.

Paris, 1938: fundação da Quarta Internacional

Tese 2: Epistemologia: Composição sócio-ecológica

A inclusão do outro-que-humano, não apenas no tabuleiro político, como também enquanto tabuleiro político, vira a mesa de modo profundo. Entre outras coisas, uma tal reviravolta, de tal alcance geral, reveste uma grande importância para a velha questão da classe, de sua composição e organização. De acordo com uma "corrente quente" do marxismo que vai desde os escritos histórico-políticos de Marx até o operaismo italiano, não há classe sem luta de classes. Esse pressuposto atribui uma primazia ontológica à subjetivação política em relação às determinações socioeconômicas. Mario Tronti (2013) relatou esta epopeia antagônica, cujos protagonistas - trabalhadores e capital - encarnam as características místicas de uma filosofia da história culminante na sociedade sem classes. Se a convicção em um futuro radiante não parece mais apropriada, esta abordagem relacional, dinâmica e conflituosa da realidade de classe ainda é válida hoje. Contrários a qualquer visão sociologisante e/ou economicista, os operaístas jamais se conformaram com simples descrições empíricas destinadas a destrinçar a posição objetiva dos sujeitos dentro das estruturas sociais. Para eles, a transição do proletariado para a classe operária não aconteceu automaticamente com base em uma simples concentração em massa de trabalhadores dentro das grandes fábricas do século XIX. Ao contrário, foi o resultado de um salto inteiramente político-organizacional e autoconsciente. Para reconhecer e explicar uma tal mudança qualitativa, os operaístas forjaram o conceito de composição de classe, que esclarece as diferenças materiais e subjetivas que caracterizam a força de trabalho e que devem ser levadas em conta na questão da organização.

De fato, a composição de classe é a ferramenta analítica e política que permitiu, primeiramente, através das enquetes operárias, distinguir diversas subjetividades dentro da classe trabalhadora (o operário e, a seguir, de poder estender o pertencimento a tais categorias a subjetividades que iam além da forma salarial classicamente entendida (a dona de casa, o trabalhador precário etc.). Assim, o conceito de classe deixou de ser uma espécie de passe-partout político e discursivo, para se transformar em um verdadeiro campo de batalha, atravessado por interesses materiais e por perspectivas políticas não sempre reconciliáveis. Se, hoje, uma atualização da análise da composição de classe parece mais indispensável do que nunca para dar conta da multiplicação das relações de trabalho e sua interpenetração com as opressões de gênero e raça, ela não pode mais se limitar a processos de exploração e de resistência inter-humanos. De fato, nos anos sucessivos, estudiosos e ativistas foram além das análises tradicionais de composição técnica e política (as relações dos trabalhadores com as máquinas e as técnicas, e os processos de sujeição política), e começaram a falar de composição social e espacial, a fim de integrar à matriz composicional também as esferas de reprodução social e de pertencimento territorial.  Tal inovação revelou-se importante para pensar em formas de solidariedade transnacional entre aqueles que vivem e se opõem a lógicas de dominação de diversos tipos e à grande distância que existe entre uns e outros. No entanto, hoje, precisamos ir mais longe.  De fato, como evidenciaram com grande eficácia Léna Balaud e Antoine Chopot (2021), através de uma enorme variedade de casos, não somos os únicos a praticar a política de revoltas terrestres. Portanto, assim como o capital aprendeu progressivamente a valorizar, em termos monetários, não apenas a força de trabalho, como também as relações sociais além do local de trabalho, assim como uma miríade de elementos de natureza humana e extra-humana, devemos aprender a valorizar politicamente não apenas nossas singularidades coletivas, como também ativar poderes que são desprovidos de intencionalidade, cuja mobilização nem sempre produz efeitos emancipatórios.

Isto leva à segunda tese: doravante qualquer internacionalismo coerente e eficaz deve necessariamente se apresentar como uma "cosmopolítica", baseada em uma compreensão ampliada da agência política - ou, como diz Paul Guillibert (2021), do "proletariado vivo". Esta ruptura fundamental implica não apenas ancorar a política à ecologia e à condição terrestre, como também reconhecer o núcleo híbrido de qualquer coalizão, muito além do que a interseccionalidade das lutas tem sido capaz de conceber e praticar, com sua articulação e sua sincronização das interdependências de classe, gênero e raça. Portanto, a subjetividade e a identidade dos coletivos envolvidos terão que se deixar remodelar na sua raiz, pois qualquer aliança deste tipo implica reconsiderar de modo drástico o antropocentrismo que tem caracterizado a política internacionalista e a visão de mundo natural-histórica de muitos movimentos sociais até hoje. Tal é o enigma da composição sócio-ecológica de classe a ser resolvido.


Tese 3: Geopolítica: (Crítica dos) dualismos

No século XX, a luta de classes subiu ao nível de um confronto geopolítico: primeiro com a transformação soviética, em 1917, da guerra mundial interimperialista em uma guerra civil revolucionária, depois com as intervenções ocidentais e japonesas, em 1918, na guerra civil russa, e finalmente com a fundação em 1919 da Terceira Internacional, ou Internacional Comunista. Esta situação de guerra de classe global, apesar das numerosas reviravoltas, cristalizou-se na Guerra Fria, com a consolidação das duas macroáreas concorrentes e a posterior tentativa do movimento não alinhado de escapar desta rígida bipartição do planeta. A configuração atual é, em muitos aspectos, drasticamente diferente, especialmente no que diz respeito aos temas do dualismo e da catástrofe. De fato, com a perspectiva de guerra nuclear sempre presente, a segunda metade do século 20 envolveu a divisão do mundo em dois campos geopolíticos e a atribuição de continentes e nações a um ou outro. Em contraste, a desordem global que surgiu após o 11 de setembro e o fim da chamada pax americana não coloca mais um bloco liberal-capitalista contra um bloco alternativo, sob a égide do qual as forças radicais-progressivas ou mesmo revolucionárias devem florescer. Por enquanto, quanto mais fundo entramos no Antropoceno, menos vemos no horizonte grandes espaços capazes de catalisar processos emancipatórios em larga escala. Trinta e cinco anos após a “queda da Cortina de Ferro”, o mundo certamente se tornou menos unipolar, mas o lento declínio da hegemonia ocidental tem andado de mãos dadas com um cenário geopolítico cada vez mais instável, caótico e perigoso, no qual os pretendentes a uma redefinição das estruturas de poder são cada vez mais assertivos. Hoje, o fim do desarmamento deu lugar a uma corrida louca para o acaparamento de recursos preciosos e de oportunidades comerciais, bem como de soft e hard power, obscurecendo as perspectivas de transição para um modelo socioeconômico ecologicamente sustentável, no qual as relações de poder geopolíticas fossem mais equilibradas.

A exacerbação das tensões interimperialistas em um mundo cada vez mais multipolar, longe de apoiar a formação de movimentos de resistência/alternativos, pode não apenas reforçar as tensões autoritárias dos capitalismos ocidentais, mas acentuar ainda mais as tendências belicosas e militaristas destinadas a redesenhar as linhas de falha geopolíticas do início do século 21. Em tal conjuntura global, é evidente que a (antiga) superpotência norte-americana e seus aliados já não detêm o monopólio da iniciativa através de seus exércitos militares (OTAN) e financeiros (FMI): a China e a Rússia, assim como numerosos outros países e atores não estatais, estão cada vez mais fugindo dos diktats ocidentais, alimentando tendências centrífugas que não levarão necessariamente a uma melhoria das condições de vida das classes subalternas ou da habitabilidade do planeta. Ao contrário, os contínuos antagonismos geopolíticos incitam cada vez mais estados e empresas à apropriação desenfreada de matérias-primas e de combustíveis fósseis, ao cruzamento das fronteiras e à invasão de espaços dentro e fora dos limites nacionais. Deste ponto de vista, não somente as fronteiras do capital e da soberania estatal desmascaram-se em relação à estreita relação que tinham durante a era moderna, mas as repercussões negativas de tais operações extrativas não mais afetam, como era o caso no imperialismo tradicional, principalmente as populações locais, mas têm um impacto imediato em escala planetária. De fato, as guerras atuais, mais do que as do passado, demonstram ter uma dimensão geoecológica, da qual as lutas antiextrativistas dos povos indígenas constituem muitas vezes a frente mais avançada. Embora em seus séculos de história anticolonial eles não se tenham representado como ecológicos em si e para si, elas  assumem um novo significado precisamente à luz do aquecimento global.

A terceira tese, portanto: hoje o internacionalismo, em sua dimensão constitutivamente antiimperialista, não pode deixar de ser tingido de verde, pois no Antropoceno a invasão de espaços e territórios não ocorre mais apenas manu militari, com meios anfíbios e aéreos, mas é realizada de forma muito mais insidiosa, ramificada e persistente, através da poluição do solo, dos mares e dos céus e através da devastação multiescalar dos equilíbrios dos ecossistemas. Tal estrutura requer pelo menos dois esclarecimentos: 1. o abandono definitivo da velha lógica campista pela qual o inimigo de meu inimigo é meu amigo - na verdade, temos múltiplos inimigos em guerra entre si, dentro e fora das fronteiras dos estados-nação em que vivemos e além de suas respectivas esferas de influência geopolítica; 2. a necessidade de ligar as lutas territoriais contra o extrativismo, onde quer que elas ocorram (América do Norte ou do Sul, China ou Rússia, Europa ou Oceania, África ou Oriente Médio), às dos migrantes climáticos e pela justiça ambiental e climática. Mas esta triangulação virtuosa só pode ser realizada em escala transnacional, muito além das fronteiras da chamada Nova Guerra Fria.

29 países africanos e asiáticos independentes e observadores de vários movimentos de libertação colonial participaram da Conferência de Bandung (Indonésia) em 1955. Na foto, o mufti palestino Hay Amin Al Husaini com o primeiro-ministro chinês Chu en Lai, que acabara de escapar ileso do primeiro atentado aéreo da história

Tese 4: Geografia: Composição espacial e circulação transnacional

Segundo a visão dominante, após o colapso do socialismo real, teria sido estabelecido um jogo de soma zero no qual "mais globalização" equivale a "menos fronteiras". Nesta perspectiva, o afrouxamento das barreiras entre os estados nacionais (acordos de livre comércio, transferências de tecnologia, liberalização de investimentos estrangeiros diretos, integração dos sistemas de produção, construção de espaços institucionais supranacionais etc.) sinalizaria irrefutavelmente a gradual erosão do significado das fronteiras. Na realidade, desde a queda do Muro de Berlim, as fronteiras se multiplicaram e diversificaram. Como Sandro Mezzadra e Brett Neilson (2014) mostram brilhantemente, não apenas as tendências para a "desnacionalização" foram contrabalançadas pelas tendências para a "renacionalização", mas as fronteiras se multiplicaram e se diversificaram. Enquanto a desregulamentação financeira e econômica andou de mãos dadas com o fortalecimento das forças policiais e de segurança, o mundo experimentou uma explosão de espaços intra e transnacionais: zonas econômicas especiais, corredores logísticos, distritos financeiros, enclaves mineiros e assim por diante. Nos interstícios entre esses locais e ao longo das linhas de demarcação que traçam os contornos das geografias sociais contemporâneas, a soberania nacional, tal como foi elaborada durante a modernidade, foi significativamente superada e os capitalismos contemporâneos assumiram novas constituições materiais. Atualmente, a paisagem global não apenas parece instável, mas também parece fundamentalmente compósita e em constante reconfiguração. Além disso, a materialidade ontológica do capitalismo global atual ultrapassou as distinções binárias entre o Ocidente e o resto do mundo, forçando-nos a reconsiderar as suposições epistemológicas das teorias do sistema-mundo e das teorias do "desenvolvimento desigual e combinado". De fato, as descrições das relações geoeconômicas e geopolíticas do (neo-)colonialismo e do (neo-)imperialismo propostas por essas abordagens são mais frequentemente baseadas em uma concepção rígida da divisão internacional do trabalho, ou mesmo em dicotomias topográficas que se opõem diretamente ao "centro" às "periferias" ou "semiperiferias". A fase mais recente da globalização, por outro lado, está gerando um novo entrelaçamento do que há muito tem sido rigidamente hierárquico, a saber: uma tendência a se tornar Norte de (certas partes do) Sul e uma tendência a se tornar Sul de (certas partes do) Norte.

Esta convulsão geográfica não demorou muito para se manifestar a nível político. Do ponto de vista da composição espacial e da circulação transnacional das lutas, os movimentos dos anos 2010 conseguiram quebrar qualquer esquematização rígida entre o Norte global e o Sul global - uma distinção que, como já dissemos, é em parte cada vez mais obsoleta para a própria acumulação do capital. As ocupações das praças, por exemplo, partiram da costa sul do Mediterrâneo e circularam por grande parte do Magrebe e do Oriente Médio, depois pela Grécia e Espanha, finalmente atravessando o Oceano Atlântico e chegando aos Estados Unidos, antes de reemergir dois anos depois na Turquia e no Brasil. O novo movimento global feminino teve uma trajetória semelhante: nasceu na Polônia e Argentina no outono de 2016, logo alcançou os EUA, Espanha e Itália, depois a Turquia e muitos outros países latino-americanos, antes de explodir no fenômeno global do #metoo. E mesmo se pegarmos um caso sui generis como o dos Coletes Amarelos, podemos ver como as geografias tradicionais da política francesa foram viradas de cabeça para baixo: a mobilização que emergiu das áreas periurbanas, dos subúrbios próximos e difusos (as franjas internas da República) foi imediatamente recebida com grande entusiasmo nos territórios ultramarinos (os 'remanescentes' do império colonial), e depois - especialmente durante as manifestações de sábado - nos corações dourados de todas as maiores cidades francesas. Além disso, é uma lição semelhante a extrair de uma revolta extraordinária como os protestos contra a violência policial nos EUA na primavera de 2020: dentro do próprio "coração" do império, as pessoas racializadas têm que lutar contra o legado ainda em curso da escravidão, ou seja, o caráter estrutural do racismo e da supremacia branca.

A quarta tese poderia, portanto, ser expressa da seguinte forma: a velha coincidência estabelecida pelo operaísmo entre composição técnica e política (Lênin na Inglaterra, Mario Tronti, 1964), assim como o velho credo leninista/terceiro-mundista, não são mais relevantes; não podemos agora pensar em apostar tudo politicamente no "ponto mais avançado do desenvolvimento capitalista" ou, ao contrário, no "elo mais fraco do comando imperial". A composição espaço-temporal do capitalismo contemporâneo exige uma mudança de perspectiva. Os casos citados nos mostram que de agora em diante não podemos mais estabelecer a priori um local (o Norte ou o Sul, o Oeste ou o Leste, a metrópole ou o "campo") como o espaço privilegiado do qual surgirão as lutas. O mundo de hoje é muito mais complexo e interconectado do que no passado, e o mesmo se aplica à composição espacial e à circulação transnacional das lutas.

Havana, 1966: fundação da OSPAAAL (Organização para a Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina).


Tese 5: Ontologia II: Sobre a dialética particular/universal

O capital é uma força histórica que homogeneíza e diferencia; desde o início da modernidade, ele se desenvolveu em escala global através de operações de universalização, que, no entanto, nunca reduzem os territórios e subjetividades sobre os quais ele exerce poder para completar a uniformidade. Pelo contrário: o capital produz tanto identidades quanto singularidades; é uma relação social geral que se expressa de maneira específica de acordo com os contextos histórico-geográficos e político-econômicos. Neste sentido, o capital manifesta uma tendência totalizante sem nunca dar origem a uma verdadeira totalidade, plenamente realizada e encerrada em si mesma. De fato, ele é constitutivamente caracterizado por uma conexão íntima com o exterior, com o que o excede e está fora dele. E são precisamente estas externalidades que substanciam a contingência e a heterogeneidade em que é encarnada de tempos em tempos. Sua poliedricidade é assim dada por sua capacidade de se adaptar à variedade de situações, aproveitando a diversidade generalizada de fatores objetivos e subjetivos que a confrontam. Através de seus contínuos impulsos expansivos - extensivos (ou horizontais) e intensivos (ou verticais) - tende constantemente a absorver e produzir novos espaços, recursos e ambientes, ao mesmo tempo em que submete, na medida do possível, novas forças de trabalho (Silver, 2008). De fato, se não encontrarem resistência, as espirais tridimensionais de valorização se estendem cada vez mais para fora e se adensam cada vez mais para dentro. As fronteiras móveis do Gesamtkapital, porém, em sua incessante necessidade de absorver novos elementos naturais, sociais e humanos, encontram limites para seu crescimento. Mas estes limites não são sempre e somente determinados por contradições objetivas e imanentes - mudanças na composição orgânica, obsolescência tecnológica e organizacional, exaustão de certos mercados, diferentes formas de concorrência etc. Eles também podem transcender, ainda que parcialmente, estas contradições e assumir uma natureza subjetiva e política.

Como uma relação social, o capital está de fato entrelaçado por definição com a "alteridade". A fenomenologia de seus "outros" é bastante copiosa: uma natureza cada vez mais historicizada, toda uma série de campos, esferas e domínios sociais que resistem à mais completa mercantilização, mas também e sobretudo à vida profissional e ao comportamento insubordinado. Agora, durante a última década, assistimos ao surgimento no cenário global de diferentes ciclos de mobilização que, por sua vez, assumiram a dialética do particular e do universal que caracteriza, tanto lógica como historicamente, a acumulação capitalista. De fato, em muitos casos nos últimos dez anos, os movimentos têm procurado unir lutas direcionadas com projetos de transformação social mais ampla. Seja o derrube de um tirano, a oposição à reestruturação social austera, a revolta contra os efeitos da especulação financeira, o protesto contra um plano de reordenamento urbano, a contestação do aumento dos custos dos transportes públicos, a luta contra a violência sexual e de gênero, a batalha para contornar os regimes de fronteira, ou a frustração generalizada com o "alto custo de vida", a injustiça fiscal, a brutalidade policial, a corrupção do sistema político, o clima e o negacionismo pandêmico, etc., os movimentos que surgiram ao longo dos anos têm se unido de várias maneiras, os movimentos que surgiram durante a década de 2010 procuraram ir além das estruturas (mais ou menos estreitas) de suas lutas específicas para desafiar a crise do sistema capitalista como um todo e suas consequências antissociais, antidemocráticas e antiambientais. Apesar de todas as suas limitações e dificuldades, eles têm sido muitas vezes capazes de mostrar o caráter estrutural das formas de dominação contra as quais lutam, permanecendo sempre capazes de elevar a generalidade das perspectivas políticas a partir de reivindicações específicas.

Quinta tese: isto nos mostra como nenhuma instância pode a priori aspirar a ocupar o centro do palco, determinando os ritmos e as apostas das revoltas e empurrando a todos para se recomporem em torno dela: os direitos sociais e políticos, claro, mas também as tão apregoadas políticas de identidade ou, mais ainda, as múltiplas facetas da crise ecológica: cada uma destas causas, no calor dos acontecimentos, pode de fato proporcionar um ponto de encontro em torno do qual se possa lançar uma ampla dinâmica de mobilização... potencialmente capaz de provocar uma ruptura histórica! São, portanto, os pontos fortes e as limitações/fracos dos movimentos realmente existentes que precisam ser considerados, examinando em detalhes e de um ponto de vista radicalmente imanente a particularidade de cada situação concreta, sem lamentar os bons velhos tempos em que os movimentos sociais e revolucionários realmente ousavam fazer o Estado ter medo e o capital sofrer.

Lançado em Porto Alegre (Brasil) em 2001, o Fórum Social Mundial pretendia ser uma alternativa ao Fórum de Davos e reunir movimentos sociais de todo o mundo. Com o passar dos anos, caiu nas mãos de burocratas, corruptos e partidos políticos, que pouco têm a ver com as lutas revolucionárias. Seus fundadores, os líderes do Movimento dos Sem Terra, o abandonaram para criar outra estrutura, junto... com o Papa Bergoglio...

Tese 6: Prática I: Resistência e prefiguração

Estas observações nos levam a voltar às questões que há muito tempo têm assolado as forças revolucionárias dos séculos XIX e XX: por exemplo, a oposição entre reforma e revolução, a articulação entre tática e estratégia, a relação entre sindicatos, partidos e movimentos sociais. Como se apresenta hoje o papel e a coerência da ideia de democracia, diante do aprofundamento das crises, da ascensão da extrema direita e da viragem autoritária do Estado? Como um mundo pandêmico sujeito ao aquecimento global acelerado nos obriga a repensar a relação entre práticas antagônicas e institucionalizadoras? Em que medida os cenários de guerra permanente e a nova situação geopolítica nos obrigam a colocar problemas práticos e organizacionais de novas maneiras? Estas questões ajudam a delinear um cenário dramático no qual a política do antipoder e a política do poder devem ser repensadas à luz da urgência crônica - o único horizonte insuperável de nosso tempo. Não é por acaso, portanto, que os movimentos sociais contemporâneos tentam trabalhar na direção de uma pluralização de perspectivas, entrelaçando, por um lado, lutas sociais, políticas, ecológicas, transfeministas e descoloniais no Norte global com as do Sul global e, por outro lado, combinando diferentes repertórios de ação: manifestações, greves, bloqueios, acampamentos, ocupações, revoltas, sabotagens ou campanhas eleitorais.

E de fato, durante a última década, os movimentos antirracistas, por exemplo, não hesitaram em experimentar uma multiplicidade de táticas (confronto com as forças da lei e da ordem, motins, saques, incêndios, mas também ocupação de espaços públicos, constituição de assembleias baseadas na democracia direta, julgamentos para obter verdade e justiça), para desvendar as múltiplas camadas de racismo (em locais de trabalho, escolas, prisões, acesso à saúde, moradia, etc.), começando com os assassinatos de jovens não-brancos pela polícia, e o assassinato de jovens não-brancos pela polícia.), a começar pelos assassinatos de jovens não-brancos pela polícia. Quanto às revoltas populares de 2018-19, a maioria das quais foi desencadeada pelo aumento dos preços de bens e serviços básicos, os picos insurrecionais, os bloqueios da economia e das metrópoles e a invenção de formas horizontais de auto-organização foram capazes de manter juntos a conflitualidade e o poder compensatório, exigindo mais dinheiro e reapropriando a política. O mesmo se aplica a vários movimentos transfeministas e ecologistas: a vontade de se opor ao patriarcado ou de lutar contra a exploração indiscriminada da natureza não só não exclui, mas antecipa a autêntica libertação do desejo e a experimentação concreta de formas alternativas de vida cotidiana, nas quais as interações interpessoais e as relações com o meio ambiente e outros seres vivos não reproduzem as lógicas de poder prevalecentes hoje. Estas expressões de resistência e alternativa, de ofensiva e autodefesa, de criação de laços e de construção de espaços de autonomia, constituem exemplos muito concretos e produtivos de poder político, que se concretizam na combinação de duas lógicas largamente complementares: 1. a eficácia imediata da oposição ao Estado, aos chefes e às forças de ordem; 2. o trabalho de construção, a curto/médio prazo, de áreas de autonomia e de lugares capazes de experimentar contra-instituições não soberanas e anticapitalistas, nas quais se organizam espaços de concentração difusa da força.

Aqui, então, está a sexta tese: na maioria dos casos, para os movimentos sociais contemporâneos, a necessidade de resistir a múltiplas relações de dominação (em casa, no trabalho, nas ruas, nos bairros, nos territórios etc.) não está dissociada do desejo de afirmar novas formas de vida no mundo e com outros, aludindo, ainda que implicitamente, à dissolução de muitas dicotomias que estruturaram a tradição revolucionária, como a tradição revolucionária da "revolução social". Isto alude, ainda que implicitamente, à dissolução de muitas dicotomias que estruturaram a tradição revolucionária, tais como as entre centralização e descentralização, unidade e diversidade, macropolítica e micropolítica, partido e movimento, organização e espontaneidade, hegemonia e autonomia, e assim por diante. Esta indicação, no entanto, muitas vezes permanece distorcida em favor do segundo polo dos díades. De fato, em seu próprio desdobramento, movimentos recentes exigem a implementação, aqui e agora, de práticas que prefiguram um futuro emancipado, renunciando à velha subordinação dos meios aos fins ou à hierarquização dos motivos de luta.

Placa cubana


Tese 7: Práticas II: Processos de Subjetivação e Enquete Militante

A última tese não implica que os movimentos sociais não possam ser criticados, nem implica que todas as reivindicações que eles fazem sejam equivalentes. Trata-se antes de seguir suas dinâmicas a partir de dentro, participando ativamente de seu autodesenvolvimento através, por exemplo, do esclarecimento de razões e objetivos e da consolidação de caminhos de mobilização. Neste sentido, a prática da enquete militante, cujo papel consiste em um processo de transformação mútua da subjetividade em luta e do contexto material, é de grande utilidade. Praticar a indagação militante significa permanecer sempre fiel à singularidade da contingência ou, dito de outra forma, desenvolver uma abordagem radicalmente materialista e fundamentalmente pragmática, rejeitando qualquer tipo de apriorismo político - seja ele de vanguarda, savant [erudito] ou baseado na identidade. Com a enquete militante, o foco está nos processos de subjetivação, perguntando: o que leva os sujeitos a não mais se submeter passivamente às condições que lhes são impostas, mas a reagir, a fazer algo em conjunto, a assumir práticas de luta mais conflituosas, a estabelecer formas mais avançadas de organização? Ou, onde o conflito não é aberto e explícito, onde apenas traços sutis ou indiretos de resistência podem ser encontrados: quais são as dinâmicas através das quais a norma é internalizada? O que leva indivíduos ou grupos a aceitar, reproduzir passivamente ou mesmo promover ativamente relações ou condições de sujeição? Em ambos os casos, a subjetividade é uma questão de luta. Deste ponto de vista, o que importa (a maioria) não é (tanto) a afinidade política que precede o momento do encontro, mas o caminho que se percorre em conjunto. Como vocês coevoluem, o que trazem um ao outro, o que aprendem um do outro e o que fazem ao longo do caminho.

Portanto, não é (somente) a posição ocupada dentro das relações sociais que faz de um grupo um sujeito político privilegiado. Assim como a classe não é um dado sociológico, o trabalho (assalariado) - apesar de sua inegável centralidade - não esgota o terreno de conflito: um estudante, um desempregado ou um trabalhador precário que luta com determinação pode valer muito mais, em termos políticos, do que um trabalhador assalariado e grevista que ocupa um nó vital no processo de acumulação. Além disso, é o conjunto de condições materiais de vida que parece decisivo, mesmo que o trabalho, em seus múltiplos avatares, conserve um lugar que não pode ser ignorado. Consequentemente, é necessário não separar "esfera de produção" e "esfera de reprodução", ou lutas "econômicas", "sociais", "políticas" e "ecológicas", mas trabalhar na acumulação de conhecimentos críticos e na expansão do antagonismo. E novamente, recentemente, a questão da combinação de lutas contra a exploração e lutas contra a dominação tem sido abordada de forma estimulante por numerosos movimentos sociais. Sem ter quaisquer ilusões sobre as relações de poder realmente em ação, as mobilizações contemporâneas têm dado alguns sinais valiosos. Seja em Tunis, Cairo, Atenas, Madri ou Nova York, a batalha "econômica" contra a pobreza absoluta, o desmantelamento do Estado social, o desmoronamento do mercado de trabalho ou o nó da dívida não foi dissociado da necessidade e do desejo "político" de tomar decisões relativas à produção e reprodução das condições materiais da vida coletiva em suas próprias mãos. Com a greve global transfeminista vemos a transposição para a esfera econômica da cessação temporária de toda atividade laboral - monetizada ou não, como o trabalho doméstico ou o trabalho afetivo e sexual - de questões de gênero como aborto, estupro, feminicídio etc. O mesmo se aplica às marchas climáticas: estudantes de metade do planeta se abstiveram de seus compromissos escolares às sextas-feiras para sacudir a opinião pública mundial e a comunidade internacional, exortando-os a não esconder a cabeça diante da urgência e gravidade de múltiplas crises ecológicas. De um ponto de vista militante, em todos os casos a tarefa principal é, portanto, empurrar cada vez mais os processos de subjetivação, radicalizando os níveis de conflito, ampliando o espectro de reivindicações, aprofundando o questionamento das relações existentes e ligando as diferentes lutas e seus respectivos núcleos. A prática da enquete militante, dedicada à coprodução de conhecimento partidário, revela-se altamente construtiva. Contra qualquer visão pastoral ou conscientizadora da política, o método da indagação militante propõe uma abordagem processual na qual o que está em jogo é a autotransformação das subjetividades através de sua própria atividade de transformação do mundo ao seu redor. Não se trata, portanto, de instruir os dominados, de ensinar-lhes o que já sabem muito bem, a fim de experimentá-lo na vida cotidiana para que possam mudar suas ideias e formas de pensar, mas de criar juntos as condições materiais e subjetivas para que eles se comportem de maneira diferente.

Sétima tese: a subjetividade é e continua sendo um campo de batalha. Portanto, somente construindo interioridades para as lutas e estabelecendo uma presença que possa se enraizar nos lugares onde vivemos e trabalhamos - uma presença que possa se reproduzir com o tempo - poderemos melhorar nossa capacidade de tornar os processos de (contra-)subjetivação cada vez mais virtuosos, fortes e duradouros. Mas nosso poder comum de pensar agindo e de agir pensando é alimentado pelas análises, narrativas e conhecimentos práticos feitos por e para as lutas. É por isso que a produção e circulação das diferentes experiências de luta (suas práticas, símbolos, imaginários, palavras de ordem, mas também suas derrotas, pontos cegos etc.) constituem um momento preliminar e complementar para qualquer tentativa de transição para uma sociedade pós-capitalista.

Mural do artista de rua Zoo Project (Bilal Berreni, 1990-2013) em Túnis

Tese 8: Organização I: Poder de Compensação – Duplo Poder

Diversos caminhos podem ser tomados a partir do que foi dito até agora. O mais decisivo, entretanto, diz respeito ao aprofundamento do nível organizacional. A gravidade da situação atual, com sua concatenação de crises de alcance abismal, reativa a perspectiva política altamente trágica do duplo poder. De fato, o duplo poder não só constitui uma alternativa viável à ambiguidade das abordagens populistas e ao renascimento lento da variante reformista, mas também se destaca em um horizonte de crítica da soberania e da centralidade do Estado-nação, como surgiu a partir destas breves considerações. Além disso, permite a combinação e a federação da grande variedade de sensibilidades e orientações que animam os movimentos contemporâneos, fortalecendo seus laços transnacionais. Na intersecção da política autônoma e da política institucional, a perspectiva do duplo poder oferece uma saída para os impasses em que caíram quase todas as experiências radicais que surgiram durante os anos 2010. Nenhuma delas, por mais disruptiva ou massiva que seja, conseguiu até agora marcar um avanço duradouro: nem as rupturas da classe trabalhadora das cadeias de valor globais, nem as irrupções das insurgências do BLM  [Black Lives Matter] ou dos Coletes Amarelos; nem o pacifismo ecológico do Norte global, nem as lutas sindicais, indígenas e camponesas do Sul global; nem as greves feministas, nem os êxodos migratórios; nem a assembleia constituinte chilena, nem as hipóteses progressistas da esquerda europeia, norte-americana e latino-americana.

Hoje, é claro, os Estados estão cada vez mais sob o controle de organismos supra, inter e transnacionais e estão cada vez mais sujeitos às restrições dos acordos de governança, atores políticos e processos econômicos que transcendem suas fronteiras. Consequentemente, parece ilusório considerá-los como o campo de batalha prioritário para a dinâmica de libertação. Entretanto, isto não significa que se deva, a priori, desinvestir este espaço de qualquer engajamento político a fim de entrincheirar-se em um 'exterior' puro, a uma distância segura desta máquina de recuperação de cada impulso e caminho para a emancipação. Hoje mais do que nunca não podemos pensar em nos retirarmos para o perímetro do Estado-nação, tornando-o a única linha de defesa de um anticapitalismo coerente. Mas também não podemos pensar que podemos realmente afetar macrofenômenos como as guerras (inter)imperialistas ou o aquecimento global sem a contribuição de alavancas estatais ou supraestatais. O objetivo é encontrar uma forma constituinte de manter unidos e organizar politicamente a pluralidade de reivindicações expressas pela multiplicação subjetiva das situações de trabalho e de vida, construindo, fortalecendo, experimentando e ligando contrapoderes capazes de cobrir várias frentes em diferentes escalas: dentro e contra o aparato estatal, fora e como alternativa a ele, fora e contra ele. Dos bairros operários aos espaços fronteiriços, passando por lugares de vida, formação, trabalho, informação etc., todo "realismo revolucionário" (Rosa Luxemburgo) deve buscar e praticar a consolidação mútua entre instâncias heterogêneas de libertação dentro de um quadro ontológico-político que explode posturas de mero princípio. Nem vertical nem horizontal, como diria Rodrigo Nunes (2021).

De fato, de uma perspectiva histórica, os movimentos revolucionários sempre conceberam o duplo poder como uma forma de preparar o terreno para uma sociedade pós-capitalista. Na perspectiva socialista, o duplo poder dá origem a uma transição longa e gradual; enquanto na perspectiva comunista, a transição é acelerada e completada por uma ruptura insurrecional. Pelo contrário, ainda seguindo Mezzadra e Neilson (2021), seria necessário redefinir a questão do duplo poder em termos de uma teoria de organização: seria então uma questão de constituir um andaime político estável capaz de se fortalecer e se desdobrar através da proliferação de núcleos de poder compensatório. O duplo poder, então, como uma arquitetura permanente para a auto-organização dos movimentos e a governança da sociedade, ramificando-se através de uma densa rede de contrapoderes. Embora de forma embrionária, é este legado que proporciona os sucessos parciais e as grandes derrotas dos ciclos de luta dos anos 2010. As recentes revoltas tiveram a capacidade de circular slogans, pôr em marcha práticas e acumular experiências subjetivas, organizacionais e discursivas que abalaram governos em todo o mundo, mas não foram capazes de interromper o aprofundamento das tendências de crise - sejam elas financeiras, sociais, geopolíticas, sanitárias ou climáticas. Por exemplo, na esteira da primeira rodada de conflagrações, testemunhamos lutas trabalhistas significativas e revoltas antirracistas, acompanhadas de políticas estatais e institucionais altamente contraditórias - pelo menos até a recalibração da governança capitalista da pandemia. A este respeito, Alberto Toscano (2021) e Panagiotis Sotiris (2021) falaram da dupla biopotência. Esta perspectiva, ancorada na esfera da reprodução (saúde, educação, habitação etc.), contém em si mesma os traços germinativos de uma contra-estratégia antagônica à soberania estatal e à governança neoliberal, sendo inteiramente centrada nas lutas sociais e no conhecimento democrático. De forma mais ampla, do legado dos Panteras Negros nas regiões baixas à invenção de novas instituições e formas de autogovernança em Chiapas e Rojava, passando pelas práticas de contra-conhecimento do movimento ACT UP, a defesa da terra pelas comunidades indígenas, etc., tais experiências mostram importantes pontos fortes, mas também explicitam os limites a serem superados. Por um lado, elas podem constituir o coração pulsante de uma atividade já em curso para desmantelar as relações sociais capitalistas e as formas de vida inerentes a elas. E também podem induzir rupturas políticas de vários tipos: desde secessões territoriais até a autonomia de certos setores sociais, passando por opções eleitorais sólidas e radicais. Por outro lado, no entanto, com demasiada frequência tais experiências não se inserem nas esferas mais elevadas da política e carecem de coordenação transnacional, não afetando verdadeiramente as forças de inércia que reproduzem as desigualdades sistêmicas. A este respeito, a pandemia e as ameaças climáticas, bem como o espectro da escalada militar e do rearmamento nuclear, tornam ainda mais evidentes as deficiências destas experiências indispensáveis. Portanto, se eles querem continuar a ter uma palavra a dizer em um mundo à beira do desastre, eles não têm outra escolha senão ir além de si mesmos.

Tese número oito: a elaboração e realização da perspectiva política do duplo poder diz respeito ao aumento do poder produzido pela multiplicidade e heterogeneidade dos contrapoderes; ou, dito de outra forma, a expansão das fronteiras dos processos de libertação que os diferentes contrapoderes - e suas ações recíprocas - aspiram/devem determinar. Daí: o poder compensatório como condição prévia e horizonte do duplo poder. A este respeito, um duplo esclarecimento. No que diz respeito aos contrapoderes de baixo, eles não devem ser apenas fins em si mesmos em seu potencial de prefigurar relações verdadeiramente emancipadas, mas devem também desempenhar um papel crucial para desafiar a ordem existente. Pelo contrário, os contrapoderes que operam no nível meso- e macropolítico devem sempre permanecer variáveis dependentes e funcionais aos processos de libertação, caso contrário correm o risco de se tornarem escleróticos na dinâmica autorreferencial, burocrática e instrumental, condenando-se a perder, mais cedo ou mais tarde, qualquer impulso transformador.

Tese 9: Organização II: Alianças Transnacionais

Algumas das experiências mais significativas dos anos 2010 aconteceram e foram coordenadas em uma escala eminentemente transnacional, de greves transfeministas a marchas climáticas, de êxodos de migrantes a redes de assistência e recepção. Isto não implica, ipso facto, em seu sucesso. Entretanto, é indiscutível que a mídia ecoa e as (fracas) estruturas organizacionais através das quais eles se desenvolveram se beneficiaram desta transcendência das fronteiras nacionais. Outros movimentos, como o BLM ou as ocupações das praças, produziram ressonâncias além de seu próprio país, fortalecendo lutas em questões semelhantes em outros lugares. Outros ainda, como as revoltas populares que pontuaram o período pré-pandêmico de dois anos, imitaram os estilos, práticas e demandas uns dos outros, inspirando-se e citando uns aos outros, mas sem realmente se encontrarem em terreno comum. Outros, como a incrível greve agrária na Índia em 2019 (a maior greve da história da humanidade), ou mais recentemente as lutas dos trabalhadores chineses contra as políticas de zero-covid, ou os protestos das mulheres iranianas (e da geração mais jovem) contra o regime de Teerã, por mais poderosos e perturbadores que sejam, não conseguiram desencadear processos genuínos de solidariedade, materiais e simbólicos, em outros lugares. Estes nós não resolvidos nos levam a levantar a questão, teórica e organizacional, da sincronização e federação das diferenças, renovando a prática política das alianças. Se, de fato, após os fracassos do período pós-2008, a questão política primária consiste em 1. a intensificação da pluralidade das lutas que vieram à tona e 2. sua articulação com base em suas respectivas autonomias, então a perspectiva de uma dinâmica de proliferação, articulação e sincronização dos centros de luta, ou seja, o fortalecimento, propagação e harmonização das lutas a partir de diferentes focos de mobilização, constitui um horizonte fundamental do trabalho político contemporâneo. Por outras palavras, o internacionalismo implica sempre, por definição, a capacidade política de traduzir orgânica e discursivamente diferentes lutas e reivindicações através de espaços, escalas e subjetividades heterogêneas.

De fato, a relativa autonomia de cada uma das estruturas de dominação, sua mútua irredutibilidade, não exige de forma alguma o sacrifício de um componente em detrimento dos outros. Pelo contrário, ela revela sua simultaneidade, abrindo uma política de articulação (Hardt, Negri, 2020). Esta abordagem é declinada espacialmente de duas maneiras diferentes, mas interligadas, dependendo se os processos organizacionais são em escala local ou transnacional. No caso de alianças locais, isto implica em não separar as opressões de gênero-raça-sexo da exploração laboral, e não simplesmente resumir as diferentes formas de dominação: como trabalhadora + mulher + negra + lésbica, indo em busca das subjetividades mais exploradas/oprimidas. O cerne da questão não é imaginar alianças externas ou simples coalizões entre uma pluralidade de subjetividades díspares, cada uma das quais apoia as lutas das outras sem se deixar transformar intimamente por elas a partir de dentro. É uma questão de ter em mente o fato de que a classe é moldada pelas dimensões de raça, gênero, sexo, desigualdades espaciais e ambientais, etc., e que as lutas ecológicas, transfeministas, antirracistas, etc., são constitutivas de classe (luta). Eis o que Sadri Khiari primeiro chamou de 'internacionalismo doméstico' e depois de 'internacionalismo descolonial' (2013), e o que Angela Davis, em um registro um pouco diferente, chamou de 'interseccionalidade das lutas' (2016). No caso das alianças transnacionais, por outro lado, trata-se principalmente de construir a distância redes de apoio ativo para a dinâmica no trabalho, a começar pelas reivindicações inerentes a elas. Desde questões alimentares, de saúde e humanitárias que agitam cada vez mais vastas regiões (não só) do Sul global, até revoltas baseadas em reivindicações mais clássicas como trabalho, renda, justiça, democracia etc.: as subjetividades envolvidas não só não podem permanecer intocadas, mas devem acompanhar o ritmo em conjunto.

Nona tese: uma coalizão intersetorial e uma aliança transnacional são espaços de composição para uma multidão heterogênea de pessoas, cuja sintonia é vital para a renovação do internacionalismo nos dias de hoje. De fato, é justamente com base na irredutível pluralidade e diversidade de subjetividades que lutam contra o estado de coisas existente que surge o enigma organizacional das a-sincronicidades a serem concedidas: não apenas o desenvolvimento do capital, mas também o do anticapitalismo depende deste nó. Dito isto, um internacionalismo à altura dos desafios do presente deve ser sempre capaz de evitar o duplo tropeço do historicismo e a cínica priorização de objetivos que caracterizaram muitas experiências do século XX (Chatterjee, 2016). Apesar de suas inegáveis limitações e fracassos, não há dúvida, entretanto, que as experiências de altermundialismo do início dos anos 2000 e a multiplicidade de revoltas em 2010 ofereceram uma oportunidade concreta para repensar práticas de solidariedade e aliança política além das especificidades das condições de vida e de trabalho e além das fronteiras de cada Estado-nação. Como a tela de uma polifonia ainda sendo escrita, elas ajudam a prefigurar o que o transnacionalismo no século 21 pode e deve ser.



Notas

[1] Há muitas histórias das três (ou quatro) internacionais e do movimento não-alinhado, assim como há muitos livros que relatam ou analisam episódios singulares e experiências significativas do internacionalismo: da guerra espanhola às lutas de libertação nacional, passando pelas revoluções que marcaram o século 20, o papel dos vários partidos comunistas, o pan-arabismo, o pan-africanismo, etc., ou, mais recentemente, o zapatismo, o altermundialismo, as lutas dos migrantes, as revoltas que se expressaram em escala transnacional. ou, mais recentemente o alterglobalismo, as revoltas que sacudiram a década de 2010 - a maioria das quais se expressaram em escala transnacional. É simplesmente impossível listar aqui as fontes. Para a melhor literatura sobre os anos 2010, pode-se referir, entre outros, para as fontes árabes, ao trabalho de Asef Bayat, em particular (2017), a Kim Moody (2017) para a nova situação das lutas trabalhistas (com um forte enfoque nos EUA) a Verónica Gago por ataques transfeministas (2021), a Andreas Malm (2022) por movimentos ecológicos, a Sue Clayton (2020) por ativismo desencadeado pela chamada crise migrante na Europa, e a Cedric Johnson (2023) por uma crítica imanente à BLM.

[2] Embora uma série de nós conceituais se repitam no texto - como aqueles entre global, planetário e terrestre, interseccionalidade e (re)composição, universalidade e diferença - o objetivo das teses não é mergulhar nestes debates teóricos (aos quais voltaremos em breve), mas fornecer alguns elementos de raciocínio para estabelecer uma discussão política sobre o internacionalismo hoje.

[3] Para uma brilhante discussão sobre o legado do internacionalismo histórico e do cosmopolitismo, ver Balibar (2022). Segundo Balibar, o universalismo defendido pelo primeiro remonta à figura do proletariado teorizado por Karl Marx e encontra na luta de classes sua pedra angular; o universalismo defendido pelo segundo, por outro lado, tem em Kant seu pai espiritual e encontra na hospitalidade do estrangeiro sua encarnação paradigmática. Para Balilbar, na medida em que não são mutuamente exclusivas, as duas tradições devem intensificar seu diálogo e encontrar maneiras de se articularem. O internacionalismo, de fato, pode proporcionar maior coerência conflitual e organizacional; enquanto o cosmopolitismo pode ajudar a desenvolver maior sensibilidade para o outro, e para a dialética da diversidade e da uniformidade que ele traz. O evento pandêmico, com sua carga de contágio e mortalidade, tornaria então o encontro entre estas duas abordagens ainda mais premente. No entanto, a posição de Balibar, por mais original e forte que seja, não leva em conta a gravidade e a novidade da crise ecológica, limitando-se a uma análise da pandemia.

[4] Como Perry Anderson (2002) argumenta no que é um dos melhores artigos sobre o assunto, qualquer análise das várias experiências que marcaram a história - gloriosa e infame - do internacionalismo não pode deixar de levar em conta as formas, operações e geografias do capital coevo com elas. O artigo de Anderson é extremamente instrutivo e inspirador, mas pode ser criticado por pelo menos duas razões, que constituem o coração teórico e político da abordagem desenvolvida nestas páginas. Primeiro, o fio da reconstrução de Anderson é decididamente historicista e linear: começa com a Primeira Internacional dos Trabalhadores, continua com a Segunda Internacional dos principais partidos socialistas e sindicatos, depois passa para a Terceira Internacional dos Estados comunistas e, finalmente, para a aliança tricontinental de lutas de libertação anticolonial. Em segundo lugar, a análise de Anderson tem como objetivo principal analisar as instituições dos movimentos revolucionários, adotando em sua maioria uma perspectiva de cima para baixo. Em contraste, em linha com estas teses, é possível imaginar uma abordagem que se ancora em uma visão multilinear da história, atenta à produtividade política das lutas autônomas e sua circulação a partir de baixo.

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