Alistair Crooke, Strategic Culture Foundation,
30/8/2021
Original: The
‘Great Reset’ in Microcosm: ‘Data Driven Defeat’ in Afghanistan
Traduzido
pelo Coletivo de
Tradutores Vila Mandinga
Version française: La bulle du « Grand Reset » : une ‘défaite fondée sur les données’ en Afghanistan
Phil Hands | Wisconsin State Journal
O programa ‘construir-nação’ chegou em 2001 ao Afeganistão. As intervenções ocidentais no velho bloco oriental nos anos 1980s e primeiros anos da década seguinte foram espetacularmente efetivas para destruir a velha ordem social e institucional; mas foram também espetaculares no fracasso: não conseguiram substituir, por sociedades movidas por instituições novas, as sociedades implodidas.
O novo mantra para todo o planeta passou a ser a
ameaça que seriam para todo o planeta os ‘estados falhados’, e o Afeganistão –
consumada a destruição decidida depois do 11/9 – precisaria de intervenção de
forças externas. Estados fracos e falhados criariam terreno fértil para o
terrorismo; e com ele vinha a correspondente ameaça à ‘ordem global’, como
então se dizia. O Afeganistão teria de ser o berço de uma nova visão liberal de
mundo.
Em outro nível, a guerra no Afeganistão tornou-se outro tipo de cadinho. Em termos muito concretos, o Afeganistão
converteu-se em campo de testes de toda e qualquer inovação em matéria de
projeto de tech menagement – gerenciamento tecnocrático. – Cada inovação
foi apresentada como precursora de futuro cada vez mais amplo para todos.
Abundaram os financiamentos: ergueram-se prédios, e um exército de tecnocratas globalizados desembarcou no Afeganistão para supervisionar o
processo. Big data, Inteligência Artificial e conjuntos sempre
crescentes de métricas técnicas e estatísticas, com certeza derrubariam as
velhas ideias ‘indigestas’.
Sociologia militar aplicada por ‘Human Terrain Teams’ [equipes encarregadas de
mapear as populações, definidas como “Terreno Humano”] e outras criações
inovadoras, foram disparadas com a missão de impor ordem ao caos. Aqui, a força
total de todo o planeta-ONGs, as mais brilhantes mentes daquele governo
internacional presuntivo, ganharam um playground com recursos
praticamente infinitos à sua inteira disposição.
Tudo estava pensado para que o Afeganistão fosse a vitrine-show do gerencialismo tecnológico. Presumiu-se que um modo adequadamente técnico
e científico de compreender a guerra e a construção-de-nações conseguiria o que
ninguém jamais conseguira, e assim se criaria uma sociedade pós-moderna,
extraída diretamente de uma complexa sociedade tribal, com sua específica
história narrada.
O ‘novo’ chegou, como se viu, embalado numa torrente de caixotes de ONGs marcadas como ‘modernidade pop-up’ [‘modernidade’ que abre automaticamente na tela do computador...].
O estadista britânico do século 18 Edmund Burke, claro, já alertara, em Reflexões sobre a Revolução na França, depois de assistir aos Jacobinos, ao vivo, reduzirem a farrapos a sua velha ordem: “só com infinito cuidado” seja quem for pode pôr abaixo ou substituir instituições que bem serviram à sociedade ao longo do tempo. Mas essa tal tecnocracia gerencial tinha pouco tempo a desperdiçar com velhas ideias ‘indigestas’.
Contudo, a queda, semana passada, do regime instituído pelo ocidente no Afeganistão revelou muito claramente que essa classe gerencial, devorada pela obsessão com a tecnocracia como único meio para construir governo efetivamente funcional, só fez ‘nascer’ algo profundamente apodrecido – a “derrota dirigida por dados” [ing. data-driven defeat”, como a descreveu um veterano norte-americano da guerra no Afeganistão –, matéria tão apodrecida que colapsou em poucos dias. Sobre os duradouros, arrastados erros do “sistema” no Afeganistão, ele escreveu:
Quem já não fosse corrupto antes de os EUA chegarem lá, tornou-se corrupto na
tempestade que foram aqueles $2 trilhões de dinheiro norte-americano derramados
sobre o projeto. Soldados norte-americanos, fabricantes de
armas,
tecnocratas globalizados, experts em governança, em assistência aos
cidadãos, peacekeepers, estudiosos da contrainsurgência e advogados –
todos fizeram fortuna lá.
Problema, só, que ideia de criar algum Afeganistão liberal progressista sempre foi, para começar, fantasia e mentira: o Afeganistão foi invadido e ocupado por causa da geografia do país. Porque seria a plataforma ideal a partir da qual seria viável perturbar toda a Ásia Central e, com isso, instabilizar Rússia e China.
Ninguém comprometeu-se verdadeiramente, porque
não havia, na realidade, Afeganistão algum com o qual alguém pudesse realmente
se comprometer. Quem pudesse roubar roubou, fosse o que fosse, dos
norte-americanos. O regime Ghani colapsou em poucos dias, porque, para começar,
sequer lá estava ou algum dia lá esteve: uma ‘vila de Potemkin’, cujo papel foi
perpetuar a ficção ou, melhor dizendo, o mito da Grande Visão dos EUA, com os
próprios EUA como modeladores e guardiões de ‘nosso’ futuro global.
A verdadeira gravidade para os EUA e Europa do atual ‘momento’ psicológico não
está só em que a construção-de-nação, como projeto que visaria a defender
valores liberais, está hoje revelada e exposta como completo fracasso, como
projeto que nada alcançou. A situação é grave também porque o fracasso no
Afeganistão revelou e expôs as limitações do gerencialismo tech, e de
tal modo que já ninguém conseguirá não ver.
A gravidade do atual ‘momento’ psicológico para os EUA – a implosão de Cabul –foi articuladamente exposta quando Robert Kagan argumentou, mais cedo, que o projeto dos ‘valores globais’ (por ínfima que fosse a base que o conectaria à vida real) mesmo assim continuaria essencial para preservar a ‘democracia’ em casa: Porque, sugeriu Kagan, uma América que desista de manter a hegemonia global deixa de contar com a solidariedade do grupo doméstico também para preservar os EUA como ‘ideia’ em casa.
Nesse caso, o que Kagan diz é importante – e pode ser esse o verdadeiro preço que os EUA pagarão pelo fracasso no Afeganistão: o esvaziamento de todas as afirmações feitas pela elite sobre a própria legitimidade ‘em casa’, sem a qual nenhuma ordem política estável será jamais possível. Mitos de legitimação podem assumir formas variadas e podem mudar com o tempo, mas uma vez que se exaurem, ou perdem a credibilidade – quando o povo deixa de acreditar na narrativa ou nas ‘verdades’ que mantenham viva a ‘ideia’ política, nesse caso... é ‘fim do jogo’.
Malcolm Kyeyune, intelectual sueco, escreve que talvez estejamos “assistindo, como testemunhas, ao fim catastrófico desse poder metafísico de legitimidade que durante décadas serviu como escudo e blindagem para a classe gerencial governante”:
“Quem conheça o
registro histórico, por pouco que seja, sabe o quanto uma perda de legitimidade
de tais dimensões traz de caixa de Pandora. Os sinais vêm-se multiplicando
flagrantemente ao longo de muitos anos. Quando disse num debate sobre os
méritos do Brexit que “acho que o povo nesse país já está farto de experts”, Michael Gove traçou provavelmente
os contornos de algo muito maior do que todos realmente sabiam àquela época.
Naquele momento, a fase aguda da deslegitimação da classe gerencial estava só
começando. Agora, com o Afeganistão, é impossível
não ver”.
Assim sendo, praticamente não há mistério algum nas razões pelas quais os
Talibã tomaram Cabul tão rapidamente. Não só o próprio projeto norte-americano
carecia de qualquer legitimidade para os próprios afegãos, como também, além
disso, aquela aura de autoproclamada expertise inderrotável – da
inevitabilidade do sucesso das fórmulas tecnológicas que protegiam a elite – já
foi desmascarada pela flagrante disfuncionalidade, visível para todos, quando o
ocidente tentava freneticamente fugir de Cabul. E todos viram que foi
precisamente aquele modo como a aventura acabou que rasgou a cortina e mostrou
ao mundo a podridão que ali fervia.
Quando a alegação de legitimidade esvazia-se, e as pessoas deixam de crer nos conceitos ou alegações que embasam um ou outro sistema ou uma ou outra aspiração a governar, é certa a extinção daquela específica elite governante – escreve Kyeyune.
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