14/09/2021

ALASTAIR CROOKE
Microcosmo do ‘Grande Reset’: a ‘derrota orientada por dados’ no Afeganistão

Alistair Crooke, Strategic Culture Foundation, 30/8/2021
Original:
The ‘Great Reset’ in Microcosm: ‘Data Driven Defeat’ in Afghanistan
Traduzido pelo
Coletivo de Tradutores Vila Mandinga
Version française: La bulle du « Grand Reset » : une ‘défaite fondée sur les données’ en Afghanistan

https://bloximages.chicago2.vip.townnews.com/madison.com/content/tncms/assets/v3/editorial/1/28/128fb921-c461-5817-b75d-cb935645b816/6079c166bbfef.preview.jpg?crop=768%2C576%2C16%2C0&resize=1200%2C900&order=crop%2Cresize 

O programa ‘construir-nação’ chegou em 2001 ao Afeganistão. As intervenções ocidentais no velho bloco oriental nos anos 1980s e primeiros anos da década seguinte foram espetacularmente efetivas para destruir a velha ordem social e institucional; mas foram também espetaculares no fracasso: não conseguiram substituir, por sociedades movidas por instituições novas, as sociedades implodidas.

O novo mantra para todo o planeta passou a ser a ameaça que seriam para todo o planeta os ‘estados falhados’, e o Afeganistão – consumada a destruição decidida depois do 11/9 – precisaria de intervenção de forças externas. Estados fracos e falhados criariam terreno fértil para o terrorismo; e com ele vinha a correspondente ameaça à ‘ordem global’, como então se dizia. O Afeganistão teria de ser o berço de uma nova visão liberal de mundo.

Em outro nível, a guerra no Afeganistão tornou-se
outro tipo de cadinho. Em termos muito concretos, o Afeganistão converteu-se em campo de testes de toda e qualquer inovação em matéria de projeto de tech menagement – gerenciamento tecnocrático. – Cada inovação foi apresentada como precursora de futuro cada vez mais amplo para todos. Abundaram os financiamentos: ergueram-se prédios, e um exército de tecnocratas globalizados desembarcou no Afeganistão para supervisionar o processo. Big data, Inteligência Artificial e conjuntos sempre crescentes de métricas técnicas e estatísticas, com certeza derrubariam as velhas ideias ‘indigestas’.

Sociologia militar aplicada por ‘Human Terrain Teams’ [equipes encarregadas de mapear as populações, definidas como “Terreno Humano”] e outras criações inovadoras, foram disparadas com a missão de impor ordem ao caos. Aqui, a força total de todo o planeta-ONGs, as mais brilhantes mentes daquele governo internacional presuntivo, ganharam um playground com recursos praticamente infinitos à sua inteira disposição.

Tudo estava pensado para que o Afeganistão fosse a vitrine-show do
gerencialismo tecnológico. Presumiu-se que um modo adequadamente técnico e científico de compreender a guerra e a construção-de-nações conseguiria o que ninguém jamais conseguira, e assim se criaria uma sociedade pós-moderna, extraída diretamente de uma complexa sociedade tribal, com sua específica história narrada.

O ‘novo’ chegou, como se viu, embalado numa torrente de caixotes de ONGs marcadas como ‘modernidade pop-up’ [‘modernidade’ que abre automaticamente na tela do computador...].

O estadista britânico do século 18 Edmund Burke, claro, já alertara, em Reflexões sobre a Revolução na França, depois de assistir aos Jacobinos, ao vivo, reduzirem a farrapos a sua velha ordem: “só com infinito cuidado” seja quem for pode pôr abaixo ou substituir instituições que bem serviram à sociedade ao longo do tempo. Mas essa tal tecnocracia gerencial tinha pouco tempo a desperdiçar com velhas ideias ‘indigestas’.

Contudo, a queda, semana passada, do regime instituído pelo ocidente no Afeganistão revelou muito claramente que essa classe gerencial, devorada pela obsessão com a tecnocracia como único meio para construir governo efetivamente funcional, só fez ‘nascer’ algo profundamente apodrecido – a “derrota dirigida por dados” [ing. data-driven defeat”, como a descreveu um veterano norte-americano da guerra no Afeganistão –, matéria tão apodrecida que colapsou em poucos dias. Sobre os duradouros, arrastados erros do “sistema” no Afeganistão, ele escreveu:


“Um SEAL aposentado da Marinha, que serviu na Casa Branca sob ambos, Bush e Obama refletiu [que] “coletivamente, o sistema é incapaz de questionar seus pressupostos básicos. E permanece como um eufemismo para os hábitos e instituições de um tipo de tecnocracia gerencial, que manifestou capacidade coletiva quase ilimitada para escapar à responsabilidade pelos próprios fracassos. Gente que crê em soluções informacionais e gerenciais, para problemas existenciais. Que aumenta pontos de dados e índices estatísticos, para não serem obrigados a escolher objetivos prudentes e a organizar estratégias sólidas para alcançá-los. Gente que crê cegamente no próprio destino garantido pela Providência e no destino de seus iguais – governar sempre, apesar dos próprios fracassos.


Quem já não fosse corrupto antes de os EUA chegarem lá, tornou-se corrupto na tempestade que foram aqueles $2 trilhões de dinheiro norte-americano derramados sobre o projeto. Soldados norte-americanos,
fabricantes de armas, tecnocratas globalizados, experts em governança, em assistência aos cidadãos, peacekeepers, estudiosos da contrainsurgência e advogados – todos fizeram fortuna lá.

Problema, só, que ideia de criar algum Afeganistão liberal progressista sempre foi, para começar, fantasia e mentira: o Afeganistão foi invadido e ocupado por causa da geografia do país. Porque seria a plataforma ideal a partir da qual seria viável perturbar toda a Ásia Central e, com isso, instabilizar Rússia e China.

Ninguém comprometeu-se verdadeiramente, porque não havia, na realidade, Afeganistão algum com o qual alguém pudesse realmente se comprometer. Quem pudesse roubar roubou, fosse o que fosse, dos norte-americanos. O regime Ghani colapsou em poucos dias, porque, para começar, sequer lá estava ou algum dia lá esteve: uma ‘vila de Potemkin’, cujo papel foi perpetuar a ficção ou, melhor dizendo, o mito da Grande Visão dos EUA, com os próprios EUA como modeladores e guardiões de ‘nosso’ futuro global.

A verdadeira gravidade para os EUA e Europa do atual ‘momento’ psicológico não está só em que a construção-de-nação, como projeto que visaria a defender valores liberais, está hoje revelada e exposta como completo fracasso, como projeto que nada alcançou. A situação é grave também porque o fracasso no Afeganistão revelou e expôs as limitações do gerencialismo tech, e de tal modo que já ninguém conseguirá não ver.

A gravidade do atual ‘momento’ psicológico para os EUA – a implosão de Cabul –foi articuladamente exposta quando Robert Kagan argumentou, mais cedo, que o projeto dos ‘valores globais’ (por ínfima que fosse a base que o conectaria à vida real) mesmo assim continuaria essencial para preservar a ‘democracia’ em casa: Porque, sugeriu Kagan, uma América que desista de manter a hegemonia global deixa de contar com a solidariedade do grupo doméstico também para preservar os EUA como ‘ideia’ em casa.

Nesse caso, o que Kagan diz é importante – e pode ser esse o verdadeiro preço que os EUA pagarão pelo fracasso no Afeganistão: o esvaziamento de todas as afirmações feitas pela elite sobre a própria legitimidade ‘em casa’, sem a qual nenhuma ordem política estável será jamais possível. Mitos de legitimação podem assumir formas variadas e podem mudar com o tempo, mas uma vez que se exaurem, ou perdem a credibilidade – quando o povo deixa de acreditar na narrativa ou nas ‘verdades’ que mantenham viva a ‘ideia’ política, nesse caso... é ‘fim do jogo’.

Malcolm Kyeyune, intelectual sueco, escreve que talvez estejamos “assistindo, como testemunhas, ao fim catastrófico desse poder metafísico de legitimidade que durante décadas serviu como escudo e blindagem para a classe gerencial governante”:


“Quem conheça o registro histórico, por pouco que seja, sabe o quanto uma perda de legitimidade de tais dimensões traz de caixa de Pandora. Os sinais vêm-se multiplicando flagrantemente ao longo de muitos anos. Quando disse num debate sobre os méritos do Brexit que “acho que o povo nesse país já está farto de experts”, Michael Gove traçou provavelmente os contornos de algo muito maior do que todos realmente sabiam àquela época. Naquele momento, a fase aguda da deslegitimação da classe gerencial estava só começando. Agora, com o Afeganistão, é impossível não ver”.


Assim sendo, praticamente não há mistério algum nas razões pelas quais os Talibã tomaram Cabul tão rapidamente. Não só o próprio projeto norte-americano carecia de qualquer legitimidade para os próprios afegãos, como também, além disso, aquela aura de autoproclamada expertise inderrotável – da inevitabilidade do sucesso das fórmulas tecnológicas que protegiam a elite – já foi desmascarada pela flagrante disfuncionalidade, visível para todos, quando o ocidente tentava freneticamente fugir de Cabul. E todos viram que foi precisamente aquele modo como a aventura acabou que rasgou a cortina e mostrou ao mundo a podridão que ali fervia.

Quando a alegação de legitimidade esvazia-se, e as pessoas deixam de crer nos conceitos ou alegações que embasam um ou outro sistema ou uma ou outra aspiração a governar, é certa a extinção daquela específica elite governante – escreve Kyeyune.

 

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