Arturo Alejandro Muñoz, Politika, 30/5/2024
Traduzido por Helga Heidrich, editado
por Fausto Giudice,
Tlaxcala
Minha pior
experiência, meu pesadelo mais horrível... Fui salvo por um milagre. Ainda
choro quando me lembro daqueles dias trágicos, destruído por minha própria irresponsabilidade
e ignorância ingênua sobre como uma ditadura realmente era e agia. Em 1973, eu
faria novamente a mesma experiência no próprio Chile.
NO INÍCIO DE 1969, cheguei à USP
(Universidade de São Paulo) como aluno livre para participar do curso de
pós-graduação "História Econômica da América Latina no Século XX",
proveniente do então famoso Instituto Pedagógico da Universidade do Chile.
Centro de alunos do Instituto Pedagógico em 1970.
Foto Fernando Velo
Fui designado a um quarto na ala de
estagiários estrangeiros na enorme universidade de São Paulo, que dividia com
Juan Carlos, um argentino, e Ricardo, um filipino. Fizemos uma grande amizade e
formamos o grupo dos "três mosqueteiros", embora o "Che"
estivesse estudando medicina e o asiático, engenharia.
Além disso, amigos que moravam em São
Paulo me arranjaram um emprego como assistente de um patrão gringo (na verdade,
ele era filho de suecos nascidos em Memphis, EUA) - o mestre Johan Erickson -
em uma empresa de laticínios, o que me permitiu, alguns meses depois, sair do
pensionato da USP e alugar um pequeno apartamento mobiliado na Avenida São
João, além de comprar - é claro - um velho Fusca de 1964, na cor azul polar.
Eu não via meus antigos colegas de
quarto com muita frequência, apenas os encontrava casualmente no enorme bandejão central da universidade, trocando palavras bem-humoradas e dando um abraço ou
um aperto de mão, antes de cada um de nós seguir o caminho específico que
nossas responsabilidades acadêmicas nos indicavam.
Cinco meses depois, terminei minha
pós-graduação, mas não retornei ao Chile por causa da vida confortável que São
Paulo havia me proporcionado, esquecendo-me de continuar meu último ano de
estudos no Instituto Pedagógico. Minhas entranhas, naquele momento,
recomendaram ao meu corpo que continuasse no Brasil por mais tempo.
Ricardo - o filipino - era um fanático
por "Che" Guevara e ninguém podia falar mal do revolucionário
argentino sem receber uma enxurrada de argumentos e considerações
histórico-sociológicas, que escapavam de seus lábios com a mesma sequência com
que uma metralhadora dispara seus tiros.
Ele estava convencido - assim como eu
- de que as considerações explicitadas pelo agora mítico guerrilheiro
constituíam, por si só, um legado político para a América Latina que deveria
ser adotado por todos os homens bem-nascidos desta parte do planeta.
Nos últimos dois meses, o asiático
vinha expressando seu desejo incontido de ler "O Diário
do Che na Bolívia", publicado no Chile pela revista "Punto
Final" e distribuído em toda a extensão daquele território democrático.
Mas no Brasil isso era mais do que proibido. Ser flagrado com o famoso
"Diário" era o mesmo que ir para o paredão, sem dó nem piedade.
Até hoje não consegui me explicar por
que tive a maldita ideia de encomendar uma edição da revista "Punto
Final" do Chile, sabendo que ela era publicada, nada mais nem menos, pelo
Movimento de Esquerda Revolucionária - o MIR -, fato que não escapou ao
conhecimento dos agentes de segurança do governo militar brasileiro.
Talvez tenha sido o hábito de desafiar
a autoridade - muito típico dos estudantes universitários chilenos naqueles
anos - ou, possivelmente, a confiança em minha boa estrela. Mas o fato é que
cometi uma estupidez indigna de um profissional maduro, inteligente e cauteloso
porque, talvez, me faltassem essas três qualidades.
Meu primo Javier, que agora é um
próspero banqueiro na Austrália, enviou a pequena revista de Santiago por via
aérea, escondida entre outros livros e publicações diversas. Peguei a encomenda
nos escritórios da VARIG no centro da cidade e fui direto para o dormitório de
Ricardo e Juan Carlos na pensão da USP. Não encontrando nenhum dos dois,
resolvi deixar a publicação (embrulhada como presente) debaixo do travesseiro
da cama do filipino, junto com um cartão que eu havia escrito lá mesmo,
desejando-lhe um feliz aniversário de vinte e seis anos.
Eu tinha certeza de que esse presente emocionaria
o asiático até as lágrimas, e não me equivoquei.
Estou convencido de que as
vicissitudes do destino são predeterminadas com bastante antecedência pela mão
de alguém muito poderoso, que guia nossos passos e limpa o caminho - ou o
enlameia, conforme o caso - para que avancemos para a meta que nos foi
designada e não para qualquer outro lugar que esteja fora das considerações
divinas.
Deixei a revista "Punto
Final" na sala de Ricardo por volta das duas horas da tarde de uma
sexta-feira. Em seguida, fui ao escritório do Sr. Erickson para fazer meu
trabalho de rotina, pensando em como e onde passaria o montão de tempo que me
restava naquele fim de semana, já que dois dias antes eu havia terminado meu
trabalho como aluno de pós-graduação na USP.
Na fábrica de laticínios, fiquei
surpreso com as palavras do meu chefe, pois ele me informou que tiraria férias
a partir da próxima segunda-feira e que sua esposa tinha preparado tudo para um
período de trinta e cinco dias em Memphis, sua cidade natal.
O "gringo", educado como
sempre, me entregou um régio cheque, ao qual juntou algumas notas de seu
próprio bolso.
Volte a este escritório daqui a
quarenta dias", disse ele, sorrindo afavelmente, "você também merece
algumas semanas de folga.
Nós nos abraçamos com uma alegria
civilizada e nos despedimos sem mais delongas.
Naquela mesma noite, eu disse a um
grande amigo, Ademir Texeira, que tinha mais de um mês para ficar à vontade.
"Você sempre disse que seu maior
desejo é viajar pelo rio Amazonas. Agora que você tem tempo e dinheiro, por que
não viaja para Manaus e realiza seu sonho?"
Dito e feito. Deixei com ele as chaves
do meu apartamento e do Volkswagen, depois de ter comprado uma passagem de
avião para a distante cidade da borracha. O voo decolou do aeroporto de
Congonhas às sete horas da manhã seguinte, sábado.
Passei mais de quatro semanas em
Manaus, conhecendo a "bondade" da Amazônia... assunto que, aliás, é
uma crônica à parte. No que diz respeito a esta história, uma vez terminada
minha estada nesses lugares sublimes, tive de usar vários tipos de transporte
para retornar à cidade industrial de São Paulo. Viajei de avião para Brasília e
de lá, de ônibus, para o Rio de Janeiro.
Eu não tinha mais tempo para demoras e
diversão, porque no Rio tive que embarcar no primeiro meio de transporte
disponível: o trem noturno para São Paulo, na classe econômica, cercado por
negros barulhentos e em um vagão sem luzes. Nenhum cobrador me pediu as
passagens, pois era muito raro um branco (ou semibranco, como o
abaixo-assinado) se aventurar nesses vagões.
Felizmente, minha pele é escura, porisso
passei "despercebido" entre aqueles "crioulos" desordeiros.
Para completar, uma mulher negra de lábios grossos me encarregou de cuidar suas
duas "crianças", que dormiram ao meu lado durante toda a viagem,
enquanto a mulher se requebrava no corredor ao ritmo do samba cantado por uns
velhinhos engraçados de pele enrugada, equipados com caixas de fósforos e uma
gaita. A noite foi uma festa contínua, uma verdadeira "escola do
samba" que não cessou sua cadência lúdica durante toda a viagem. Ao
amanhecer, o sono e o cansaço, causados pela batucada dos velhos, bateram na
negra que adormeceu junto das "crianças pretinhas", que não tinham nenhum
jeito de acordar em meio ao burburinho musical.
Enquanto isso, jurei que nunca mais
faria uma viagem como aquela. Por terra e sem dinheiro.
Ah, nunca jure em vão, pois a mão de
Deus é mais longa do que a esperança.
Na estação, peguei um táxi e fui para
a casa do meu amigo Ademir, onde estavam meu Volkswagen e as chaves do
apartamento.
MEDO
Assim que passei pelo portão do jardim
da frente, percebi que algo ruim havia acontecido, pois Dona Severa, mãe de
Ademir, olhou para mim como se tivesse visto um fantasma aparecer. Sem pudor,
ela me arrastou para dentro de casa e me fez entrar em um dos quartos dos
fundos, enquanto fechava a porta e fechava as cortinas das janelas. Em seguida,
levou as mãos à boca e começou a soluçar.
Olhei para ela com a melhor cara de
idiota que eu poderia ter naquela situação.
"Você tem que fugir do
país", disse ela em voz alta, e continuou a chorar.
Depois de se recuperar de seu espanto
inicial, ela me contou o que havia acontecido durante minha ausência. E foi
realmente terrível e de partir o coração.
Meu amigo Ricardo, o filipino, havia
sido preso pelos gorilas da "Segurança" em São Paulo. A polícia
estava me procurando por toda a cidade. Fui acusado de ser um "agitador
estrangeiro e marxista confesso". Meus dias estavam contados.
Dona Severa me contou sobre os acontecimentos
que ocorreram na mesma tarde em que deixei sob o travesseiro de Ricardo a
edição da revista "Punto Final", que publicava, na íntegra, o famoso
"Diário de Che na Bolívia", que o filipino queria ler como se fosse a
Bíblia de todos os revolucionários.
Estudante é preso em passeata na Avenida Ipiranga,
Centro de São Paulo (SP), em 1968. Arquivo Nacional, Correio da Manhã
Inesperadamente, e pela primeira vez
naquele ano, a polícia da universidade realizou uma batida de rotina nos
pensionatos dos estudantes às oito horas da noite.
Eles encontraram o "Diário do
Che" sobre o pijama do Ricardo, ao lado do meu cartão de felicitações.
Uma operação conjunta da polícia e da
"Segurança" foi imediatamente lançada para caçar Ricardo e Juan
Carlos, o argentino. Ambos estavam na biblioteca da USP.
Em 1968, Exército apreende livros e material de protesto em diretórios acadêmicos de faculdades no Rio de Janeiro. Os nomes dos estudantes envolvidos foram entregues aos serviços de informação e repressão da ditadura para inquéritos e prisões. Arquivo Nacional, Correio da Manhã
Eles foram levados para o porão de um
prédio próximo a Guarulhos, onde foram "interrogados" com a
ferocidade e insanidade que as técnicas utilizadas para tortura permitiam.
Charge de Augusto Bandeira, Correio da Manhã, novembro de 1964
Na manhã seguinte - eu havia
aterrissado em Manaus naquele momento - eles foram atrás de mim e revistaram
meu apartamento, encontrando-o vazio e com sinais claros indicando minha viagem
para um lugar que, a propósito, os agentes não conheciam ....
Foram até a empresa de laticínios onde
eu trabalhava como assistente de um gringo, que também estava fora do Brasil na
época; Ricardo, na sala de "interrogatório", havia mencionado que
aquele era o meu local de trabalho. Obviamente, também não conseguiram me
encontrar lá.
Mas a caçada já havia começado, pois
meus dois amigos, como única forma de amenizar a saga de torturas e
espancamentos, colocaram sobre meus ombros a responsabilidade por aquele ato
("trazer material terrorista para o país"), que era considerado
"altamente ilegal" pela ditadura brasileira.
Os aeroportos foram bloqueados para
mim naquela tarde, e meu nome apareceu muito brevemente em um noticiário de TV.
Posse do presidente Costa e Silva em 15.03.1967
Assustado, Ademir escondeu meu
Volkswagen no quintal da fábrica de botões de Gaspar, sobrinho de Dona Severa,
que era um direitista declarado e participava de grupos de análise política de
apoiadores declarados do ditador Costa e Silva. Ninguém me procuraria lá, e
Gaspar foi informado imediatamente por Ademir sobre a situação em questão, e
seu primo empresário aceitou o assunto com coragem e solidariedade.
"Você precisa sair do Brasil
agora mesmo", insistiu Dona Severa. Se o pegarem aqui, você é um homem
morto.
Charge de novembro de 1968 sobre o início das atividades do Esquadrão da Morte em São Paulo. A charge sugere a cooperação entre o Esquadrão da Morte (E.M.) com os grupos terroristas Comando de Caça aos Comunistas (C.C.C.) e Movimento Anticomunista (M.A.C.) Arquivo Nacional, Correio da Manhã
A FUGA
Ademir me pegou à tarde e me levou
para a casa de Gaspar escondido no banco de trás de seu carro. Eu me senti como
um judeu fugindo da SS em Hannover, sem um centavo no bolso e impedido de ir ao
banco para sacar algum dinheiro. Eu estava à mercê da vontade de meus amigos,
cujos rostos mostravam a ansiedade que só o medo pode representar.
Gaspar me abrigou em um pequeno cômodo
que ele usava para guardar ferramentas e sucata, na última escuridão de sua
casa.
Às onze horas da noite, eles me
tiraram do esconderijo para me levar a um lugar mais seguro. Por meio de outro
amigo, Magrela, que trabalhava na APSA (Aerolíneas Peruanas), onde havia
alcançado o cargo de chefe do balcão da companhia aérea no aeroporto de
Congonhas, eles conseguiram entrar em contato com o consulado chileno em São
Paulo.
O maldito cônsul não se interessou
pelo meu problema e preferiu deixar o caso nas mãos das autoridades locais,
argumentando que se tratava de uma questão puramente policial.
Jurei que nunca votaria em um
candidato democrata-cristão no Chile. O governo de Eduardo Frei Montalva estava
sendo mesquinho com seu apoio em um momento em que minha vida estava correndo grande
perigo.
Ademir e Gaspar me deixaram no
primeiro andar do prédio onde morava Pascual, um espanhol que trabalhava como
secretário administrativo no Consulado.
Esse espanhol tinha sua própria
história, cheia de perigos passados e batalhas antigas, mas, mais importante,
ele conhecia em primeira mão o sabor da derrota e da fuga, pois em seu país
natal ele foi perseguido até a morte por elementos "carlistas" que
lutavam na guerra civil ao lado de Francisco Franco.
Ele conseguiu escapar por milagre, atravessando
a fronteira no meio dos Pirineus. Da França, ele foi levado para a Argentina.
Na época, Pascual tinha 23 anos de idade. Ele trabalhou no porto de La Boca
como carregador, depois como despachante e, por fim, conseguiu o cargo de
assistente de serviço na Embaixada do Chile em Buenos Aires. Anos de trabalho
árduo e estudos noturnos permitiram que ele chegasse ao cargo de secretário.
Ele havia sido destacado para o
Consulado do Chile em São Paulo apenas sete meses antes.
Felizmente, ele costumava viajar na
APSA, atendida pelo próprio Magrela. Portanto, eles eram amigos.
Pascual era solteiro, morava sozinho e
tinha cargo diplomático. Ele e sua família tinham imunidade.
Contei-lhe em detalhes os trágicos
acontecimentos e ele se dispôs a me ajudar a sair do Brasil. Ele falou muito mal
dos governos sul-americanos, descrevendo-os como "atrasados de
gravata". Disse uma frase que me impressionou profundamente:
"Os filhos da Espanha não
conseguiram abandonar sua predileção por desfiles, pelo garrote e pelo patrão.
Veja o Chile. Seu povo sempre foi uma colônia. Primeiro dos incas e seu
império, depois da Espanha e do rei, depois dos oligarcas ingleses e agora dos
"ianques". Esse seu país deve uma revolução à sua história."
O "cara" era simpático e
esclarecido também. Devo acrescentar "extremamente solidário", pois
ele se encarregou de estruturar minha fuga passo a passo, pesquisando horários
e combinações de ônibus para o Uruguai. Ele também conseguiu (não sei como)
sacar algum dinheiro de minha conta bancária por meio de um documento simples
que assinei em seu próprio apartamento.
Finalmente, em uma tarde de
quinta-feira, Pascual tinha tudo pronto. Ele tinha feito tudo atrás das costas
do cônsul, colocando em risco um futuro profissional seguro e confortável, mas
o fez porque alguém tinha que fazer isso.
"Você viajará por terra, nesta
mesma noite, na linha 'Pluma' até Porto Alegre. Lá, será transferido para o
ônibus uruguaio da empresa "Onda" que vai para Montevidéu. Eles o
procuram nos aeroportos, não nas rodoviárias. Você atravessará a fronteira com
o Uruguai no Chuí; isso será por volta da meia-noite de depois de amanhã. Você
conhece o Chuí?"
Assenti com a cabeça, com um vago
gosto de possível morte brincando nas paredes internas de minhas bochechas.
Eu havia estado naquele pequeno e
simpático vilarejo meses antes, em uma rápida viagem ao lado uruguaio para
revalidar minha "Carteira 19", um tipo de visto que os brasileiros
exigiam dos estrangeiros. Eu me lembrava com certa precisão da estranha vida
que havia ali. Uma rua larga e empoeirada separava o Uruguai do Brasil. Havia
lojas com placas em espanhol e português em cada calçada. As pessoas caminhavam
livremente "de um país para o outro", pois duas alfândegas ficavam
nos arredores da cidade, nas entradas norte e sul. Esse era o Chuí. Uma faixa
no pampa, uma irrupção de cor na vasta paisagem plana, um pequeno ponto na
distância.
"Bem, então evitarei ter que
fazer desenhos no papel", disse Pascual, acrescentando mistério às suas
próximas palavras. O ônibus chegará diretamente no lado sul do Chuí,
contornando a cidade e parando a vinte metros da alfândega uruguaia, em frente
a um posto militar brasileiro. Os passageiros estarão sonolentos, então o condutor
descerá do ônibus para que os militares verifiquem e carimbem a lista com os
nomes dos viajantes. O ônibus seguirá imediatamente para o território uruguaio,
estacionando na alfândega, onde os procedimentos de entrada são mais demorados.
Ele fez uma pausa, anunciando para mim
a chegada do perigo. Ele agarrou meu braço e se lançou pelo escorregador de
advertência que fez minha pele arrepiar.
"Se os militares ordenarem que as
luzes internas do ônibus sejam acesas e pedirem aos passageiros que
desembarquem, isso significa..."
"É o que?" -perguntei com
espanto.
"Que eles vão prender
você...". Ele me olhou com profunda seriedade, tentando saber o grau de
pânico que minha covardia era capaz de atingir; embora eu estivesse tremendo
como um pudim de gelatina, Pascual continuou a me treinar para esse eventual
momento de risco.
"Não faça nenhuma besteira. Eles
não têm sua foto, tenho certeza disso, então você pode se misturar ao resto dos
passageiros. Saia do ônibus com absoluta calma e caminhe lentamente em direção
ao posto militar. Pare acerca de quatro metros da entrada e deixe que outras
pessoas entrem no local. Aja como louco. Acenda um cigarro ..... Você fuma, não
é? .... Bem, aproveite, ou finja que está aproveitando, o sabor do tabaco e o
ar noturno.
"Tenho certeza", gaguejei,
"mas, em algum momento, serei forçado a entrar".
"Você não pode fazer isso. Assim
que você ver os soldados fazendo o possível para ajudar os passageiros a entrar
naquele escritório, corra..."
"Eu correr? Para onde?", gemi.
"Em direção da alfândega
uruguaia, que fica a vinte metros dali, em linha reta. Corra como se o diabo
estivesse atrás de você. Sua vida está em jogo, meu rapaz. Assim que você
chegar aos uruguaios, grite pedindo asilo político."
"Será que vou conseguir?"...
meu corpo inteiro parecia tremer de medo.
"Imediatamente, puxa vida,
imediatamente".
A NOITE DA FUGA E DA VERGONHA
A viagem para Porto Alegre foi um
pesadelo. Eu não pestanejava e suava como um homem gordo em um banho turco.
Toda vez que o "Pluma" parava em algum lugar, meus esfíncteres
ameaçavam se romper.
Fiz uma rápida transferência para o
ônibus "Onda" e peguei o primeiro assento na porta. Não me lembro nem
da cara do passageiro ao meu lado. Eu estava exausto da viagem de dezoito horas
desde São Paulo e tinha mais dezoito horas para chegar à fronteira.
Acho que cochilei um pouco.
Chegamos no Chuí à uma e meia da
manhã. A cidade estava dormindo sob um impressionante manto de estrelas.
O ônibus parou em frente à barreira do
posto brasileiro. Três soldados se aproximaram de nós. O condutor falou com
eles e entrou no galpão que servia de escritório. Eu estava suando como um
cavalo de tração. Senti pressa de urinar e ondas de nojo subiam pelo esôfago
até a garganta. Pensei no Chile. Senti saudades da minha rua e dos meus pais,
enquanto amaldiçoava "Che" por ter escrito um maldito diário de
campanha.
O condutor voltou em um ritmo
acelerado. Ele veio sem a lista. Ele acendeu as luzes e, com um forte bater de
palmas, ordenou que todos os passageiros descessem do ônibus.
Fui descoberto!!!
Desci tremendo de pânico em meio aos
passageiros que protestavam ruidosamente por terem sido forçados a sair ao relento
no frio da noite. Deixei sete ou oito deles entrarem no posto, ladeados pelos
militares.
Parei e acendi um cigarro. Minhas mãos
tremiam na escuridão.
As luzes da alfândega uruguaia eram
claramente visíveis a UMA QUADRA DE DISTÂNCIA. Uma quadra. Cem metros.
"Eles vão me encher de balas", eu choramingava internamente.
Um dos soldados se aproximou de mim
rapidamente, fixando o olhar em minhas mãos. Ele agarrou meu ombro e me puxou
para o ponto onde havia alguma luz. Aí, eu me molhei.
"O senhor tem um cigarro pra
gente?"
Passei a ele o pacote do "Minister"
sem me dar conta, automaticamente. O homem uniformizado me agradeceu com uma
reverência profunda, colocou o rifle sobre o ombro e começou uma conversa fiada,
enquanto eu ouvia uma reportagem esportiva que vinha do rádio que os guardas
uruguaios tinham ligado no volume máximo.
Não entrei no posto brasileiro porque
o soldado me reteve ao lado dele, puxando conversa. Pude ver o condutor
entrando e saindo do ônibus com um balde, panos, uma vassoura e folhas de
jornal.
Senti o cheiro de minha própria urina.
Eu estava apavorado, esperando ouvir o mandado de prisão e receber uma
enxurrada de golpes e insultos.
Pensei em Ricardo e Juan Carlos, nus
na "grelha", resistindo à morte que viajava dentro de um cabo
elétrico. Será que eu teria suportado tal tortura?
"Todos os passageiros devem
embarcar no ônibus", gritou o motorista. Estamos muito atrasados.
As pessoas iam embarcando no ônibus
com uma calma que deixou meus nervos ainda mais à flor da pele. Despedi-me do
soldado e corri para o ônibus. Sentei-me em minha própria vergonha e enterrei o
rosto em minhas mãos para soluçar baixinho.
Por que nos ordenaram que saíssemos o
ônibus e depois nos permitiram sair sem problemas?
Uma menina de cinco ou seis anos havia
vomitado na parte de trás do ônibus, então o condutor aproveitou a parada no
posto brasileiro para limpar os despojos enquanto eles controlavam a lista de
passageiros.
E eu tinha me urinado por nada!!!!
Com a umidade do meu pavor cheirando a
amoníaco, peguei minha mala e pedi permissão aos uruguaios para tomar banho no
banheiro disponível ao público.
Banhado, barbeado e com roupas limpas,
saí para respirar o ar de liberdade do Chuí-leste. Aproximei-me da cabine
para falar com os guardas, a quem perguntei, com a melhor cara de inocente que
pude, sobre o jogo de futebol que estava sendo transmitido naquele momento.
"É a reprise do jogo entre o
Peñarol e o Flamengo", disse um deles, consolando-se com algo que eu não
conseguia entender. “Eles jogaram ontem à tarde, no Rio de Janeiro. O Peñarol
deu um baile nos negros. Ganhou de 3x0. Aumentamos o volume para que nossos
colegas do outro lado sofressem um pouco”.
Eu ria junto com aqueles homens de
aparência dura e bigodes grossos. Era lindo sentir-se completo e livre.
Viva o Uruguai, viva Artigas, viva
Peñarol!!!!
Cinco dias depois, com a mala na mão,
toquei a campainha da casa dos meus pais, no meio da Avenida Vicuña Mackenna,
em Santiago do Chile.
Arturo Alejandro Muñoz
(Curicó, Chile, 1945)
Professor de história
e assistente social (ambos da Universidade do Chile).
Escritor e colunista.
Autor dentre outros de “Señor concejal”, “El honor de un
cobarde”, “La casa Roschauffen”, “Con los ojos de mi padre”, “Los hombres de la
Cimitarra” e “Tres hilos para
una aguja”.
Foi membro do Comando
Nacional dos Trabalhadores (CNT) em 1983-1985 na luta contra a ditadura
militar.
Atualmente, vive em
Coltauco, região de O'Higgins. @artamumu