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30/09/2024

SCARLETT HADDAD
Apesar das críticas ao Hezbollah, este não é o momento para discórdia interna entre os libaneses


Scarlett Haddad, L’Orient-Le Jour, 28/9/2024
Traduzido por
Helga Heidrich, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Scarlett Haddad é jornalista e analista do jornal libanês de língua francesa L'Orient-Le Jour. Ela é especialista em questões políticas internas libanesas, além de assuntos sírios, palestinos e iranianos do ponto de vista do Líbano, incluindo tópicos relacionados ao Hezbollah e ao conflito árabe-israelense.

Em um momento em que está travando uma guerra feroz, embora de apoio, contra os israelenses, o Hezbollah teme que possa enfrentar distúrbios internos. Em um momento em que os habitantes do sul voltaram a refugiar-se por causa da violência dos bombardeios israelenses em sua região, vozes políticas e de outros tipos se levantaram para criticar o Hezbollah e pedir que ele feche a “frente de apoio”. Isso pode ser pura coincidência ou a expressão da inquietação popular em relação a essa frente e à perspectiva de sua ampliação, mas também pode ser um passo em um plano para colocar o Hezbollah contra a parede como um prelúdio para seu enfraquecimento.


Kamal Sharaf, Iêmen

Depois de ter mais ou menos evitado criticar o Hezbollah muito abertamente, especialmente após a escalada israelense dos últimos dias, algumas figuras políticas decidiram levantar a voz. Isso pode ser totalmente justificado pela intensificação e ampliação dos ataques israelenses em várias regiões do Líbano e pela ameaça de uma invasão terrestre, mas a natureza simultânea dessas críticas levanta questões para o Hezbollah.

Em um momento em que é alvo de ataques assassinos e está conduzindo uma investigação interna sobre uma possível infiltração, que seus oponentes estão explorando para minar sua credibilidade entre seus apoiadores, o Hezbollah está se questionando se essa súbita onda de críticas é espontânea ou se é orquestrada por partidos estrangeiros. Ele também se pergunta  se esse é apenas um meio indireto de pressioná-lo a aceitar determinadas condições ou se há um plano mais amplo.

O que realmente chama sua atenção é o momento dessa campanha, que ocorre em um momento em que as negociações de trégua devem ser realizadas em Nova York. Essas negociações, lideradas por americanos e franceses, devem, em princípio, envolver uma interrupção de 21 dias nos combates, o tempo necessário para se chegar a um acordo sobre uma solução aprofundada para a situação na fronteira sul do Líbano. O Hezbollah e, com ele, o Líbano oficial estão insistindo que o acordo também deve abranger Gaza, mas os israelenses e os americanos querem separar as duas questões. Portanto, eles poderiam tentar pressionar o Hezbollah para que mude de ideia sobre o último ponto.

Entretanto, o Hezbollah é inflexível e continuará a apoiar o Hamas em Gaza por meio da frente aberta no sul do Líbano. Ele considera que todas as tentativas de mudar de ideia estão fadadas ao fracasso, especialmente porque, após os últimos ataques israelenses, qualquer concessão de sua parte seria interpretada como uma derrota. Portanto, ele está preparado para enfrentar as consequências dessa posição, mas o que o preocuparia é se essa súbita onda de críticas não fosse o prelúdio de uma agitação interna. Além dos ataques israelenses, ele terá de lidar com a notória discórdia intercomunitária que se tornou uma obsessão para ele desde os confrontos de maio de 2008 entre o Hezbollah e o governo de Siniora.

Nos últimos meses, as pessoas próximas ao Hezbollah consideram que uma das maiores conquistas da abertura da “frente de apoio” foi a consolidação das relações entre os partidários do grupo e a rua sunita que favorece o Hamas. Esse tipo de “lua de mel” que sunitas e xiitas no Líbano estão vivendo atualmente, unidos pela causa palestina, significa que o Hezbollah pode sentir que sua retaguarda está protegida e, portanto, pode se dedicar totalmente à frente e ao seu ambiente popular. Além disso, o fato de que, de tempos em tempos, combatentes palestinos e outros de vários grupos sunitas lançam mísseis contra o norte israelense a partir do sul é uma forma de mostrar a extensão do entendimento e da coordenação entre eles e o Hezbollah. Da mesma forma, a recepção de pessoas deslocadas do sul em regiões predominantemente sunitas é mais uma prova das boas relações que existem atualmente. Esse é um golpe terrível contra qualquer tentativa de provocar discórdia entre sunitas e xiitas. Mesmo após os chamados ataques com bip e walkie-talkie, muitos jovens sunitas, especialmente de Tarik Jdidé, correram para dar sangue aos feridos.

No que diz respeito à comunidade drusa, o Hezbollah também pode ficar tranquilo devido às posições assumidas por seu líder Walid Joumblatt, que expressou repetidamente seu apoio à causa palestina e ao Hamas em particular nessa guerra que já dura mais de 11 meses. Ele também fez várias declarações pedindo aos habitantes da montanha que abrissem suas portas para os deslocados do sul e aumentou o número das chamadas reuniões de reconciliação e aproximação com várias partes na montanha e em outros lugares, com o objetivo declarado de cortar pela raiz qualquer tentativa de discórdia interna.

Ainda restam os cristãos, que parecem ser mais difíceis de serem tratados pelo Hezbollah no período atual. Suas relações com o Movimento Patriótico Livre (MPL) se tornaram mais complicadas e ele não pode mais contar com o apoio inabalável da base do partido. É verdade que o MPL elaborou um plano para ajudar os deslocados no sul, mas a sensibilidade de sua base não é mais tão favorável ao Hezbollah. Por outro lado, a maioria dos outros partidos é totalmente hostil ao Hezbollah e, mesmo que seus líderes tenham esperado antes de expressar abertamente suas críticas, elas já estavam no ar.

Quanto a isso, sem dúvida não há nada de novo. Mas recentemente circularam rumores de que alguns partidos estão se organizando e treinando para um possível confronto com o Hezbollah. Imediatamente, o espectro da guerra civil, em todos os seus estágios, que ocorreu entre 1975 e 1990, reapareceu. Obviamente, as partes envolvidas negam qualquer desejo de se envolver em um novo confronto armado e afirmam que suas críticas são apenas a expressão de uma posição política justificada. Da mesma forma, fontes militares bem-informadas negam totalmente os rumores de uma possível militarização do conflito político, garantindo-nos que não há preparativos nesse sentido. Declarações tranquilizadoras nestes tempos de ansiedade. Portanto, este não é o momento para discórdia.

José Alberto Rodríguez Avila, Cuba

 

ALAIN GRESH/SARRA GRIRA
Gaza - Líbano, uma guerra ocidental


Alain Gresh e Sarra Grira, Orient XXI, 30/9/2024
Traduzido por
Helga Heidrich, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Alain Gresh (Cairo, 1948) é um jornalista francês especializado na região do Mashreq e diretor do site OrientXXI.

Sarra Grira tem doutorado em literatura e civilização francesas, com uma tese intitulada "Roman autobiographique et engagement: une antinomie? (XXe siècle)", e é editora-chefe do site OrientXXI.

Até onde Tel irá Aviv? Não satisfeito em reduzir Gaza a um campo de escombros e cometer genocídio, Israel está estendendo suas operações ao vizinho Líbano, usando os mesmos métodos, os mesmos massacres e a mesma destruição, convencido do apoio infalível de seus financiadores ocidentais que se tornaram cúmplices diretos de suas ações.

 

O número de libaneses mortos nos bombardeios ultrapassou 1.640, e as “façanhas” israelenses se multiplicaram. Inauguradas pelo episódio dos bipes, que fez com que muitos comentaristas ocidentais ficassem maravilhados com a “façanha tecnológica”. Que pena para as vítimas, mortas, desfiguradas, cegas, amputadas, eliminadas. Será repetido ad nauseam que, afinal de contas, foi apenas o Hezbollah, uma “humilhação”, uma organização que, não falta lembrar, a França não considera como organização terrorista. Como se as explosões não tivessem afetado toda a sociedade, matando tanto milicianos quanto civis. No entanto, o uso de armadilhas é uma violação das leis marciais, conforme apontado por vários especialistas e organizações humanitárias.

Os assassinatos sumários de líderes do Hezbollah, incluindo o de seu secretário-geral Hassan Nasrallah, sempre acompanhados de inúmeras “vítimas colaterais”, não causam nem mesmo um escândalo. O mais recente gesto de Netanyahu de desprezo pela ONU foi dar o sinal verde para o bombardeio da capital libanesa na própria sede da organização.

Em Gaza e no restante dos territórios palestinos ocupados, os membros do Conselho de Segurança da ONU ignoram cada vez mais as opiniões da Corte Internacional de Justiça (CIJ). O Tribunal Penal Internacional (TPI) está adiando a emissão de um mandado contra Benjamin Netanyahu, apesar de seu promotor relatar pressões “de líderes mundiais” e de outras partes, incluindo ele próprio e sua família.

 Já ouvimos Joe Biden, Emmanuel Macron ou Olaf Scholz protestarem contra essas práticas?

Há quase um ano, um punhado de vozes, que quase parecem ser os palhaços da aldeia, vem denunciando a impunidade israelense, incentivada pela inação ocidental. Essa guerra nunca teria sido possível sem o transporte aéreo de armas americanas - e, em menor escala, europeias - e sem a cobertura diplomática e política dos países ocidentais. A França, se quisesse, poderia tomar medidas que realmente atingiriam Israel, mas ainda se recusa a suspender as licenças de exportação de armas que concedeu. Ela também poderia pressionar a União Europeia, com países como a Espanha, para suspender o acordo de associação com Israel. Não está fazendo isso.

A interminável Nakba palestina e a destruição acelerada do Líbano não são apenas crimes israelenses, mas também crimes ocidentais pelos quais Washington, Paris e Berlim têm responsabilidade direta. Longe da postura e da teatralidade da Assembleia Geral da ONU nos dias de hoje, não nos deixemos enganar pelas birras de Joe Biden ou pelas esperanças piedosas de Emmanuel Macron pela “proteção de civis”, que nunca perdeu uma oportunidade de mostrar seu apoio inabalável ao governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu. Não vamos nem esquecer o número de diplomatas que deixaram o salão da Assembleia Geral da ONU quando o primeiro-ministro israelense tomou a palavra, em um gesto que teve mais a ver com catarse do que com política. Pois, embora os países ocidentais sejam os principais responsáveis pelos crimes de Israel, outros, como a Rússia e a China, não tomaram nenhuma medida para pôr fim a essa guerra, cujo escopo está se expandindo diariamente, transbordando para o Iêmen hoje e talvez para o Irã amanhã.

Essa guerra está nos mergulhando em uma era sombria na qual as leis, o direito, as salvaguardas, tudo o que impediria a humanidade de afundar na barbárie, está sendo metodicamente destruído. Uma era em que um lado decidiu levar o outro lado à morte, julgando-o “bárbaro”. Inimigos selvagens”, nas palavras de Netanyahu, que ameaçam a ‘civilização judaico-cristã’. O primeiro-ministro está tentando arrastar o Ocidente para uma guerra de civilização com conotações religiosas, na qual Israel se vê como o posto avançado no Oriente Médio. Com sucesso indiscutível.

Por meio das armas e munições que continuam a fornecer a Israel, por meio de seu apoio inabalável a um espúrio “direito à autodefesa”, por meio de sua rejeição ao direito dos palestinos à autodeterminação e à resistência a uma ocupação que a CIJ declarou ilegal e ordenou que fosse interrompida - uma decisão que o Conselho de Segurança da ONU se recusa a implementar - esses países são responsáveis pela arrogância de Israel. Como membros de instituições de prestígio como o Conselho de Segurança da ONU e o G7, os governos desses Estados endossam a lei da selva imposta por Israel e a lógica da punição coletiva. Essa lógica já estava em ação no Afeganistão em 2001 e no Iraque em 2003, com resultados conhecidos. Em 1982, Israel invadiu o Líbano, ocupou o sul, cercou Beirute e supervisionou os massacres nos campos palestinos de Sabra e Shatila. Foi essa “vitória” macabra que levou ao surgimento do Hezbollah, assim como a política de ocupação de Israel levou ao 7 de outubro. Porque a lógica da guerra e do colonialismo nunca pode levar à paz e à segurança.

 

28/09/2024

Conclusões do Primeiro Congresso da Internacional Antifascista (IA), Caracas, setembro de 2024

 

Congresso Mundial contra o fascismo, o neofascismo e outras expressões similares
Centro de Convenções Simón Rodríguez
La Carlota. Caracas Venezuela
10 e 11 de setembro de 2024

CONCLUSÕES DO PRIMEIRO CONGRESSO DA INTERNACIONAL ANTIFASCISTA (IA)

Original em espanhol
Traduzido por
Helga Heidrich, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala
Versão em francês
Versão em inglês

O evento contou com a presença de mais de 1.200 participantes de 97 países, especialmente da América Latina, África, Ásia e Oriente Médio.
Com quatro discursos principais e oito painéis, o evento contou com mais de 30 palestrantes.
Movimentos sociais, feministas, juvenis e culturais, intelectuais e acadêmicos, sindicatos e partidos políticos, celebridades, organizações indígenas, coletivos de direitos humanos, organizações dos povos do mundo.
O internacionalismo em defesa da vida humana e do planeta não pode ser dissociado da luta pela paz, pela justiça social e pelos direitos humanos, nem das lutas antifascistas, anticapitalistas, anticolonialistas, antipatriarcais e anti-imperialistas, com base nos princípios do socialismo do século XXI.

Fascismo do século XX

O fascismo do século XX surgiu como resposta a uma série de crises econômicas, sociais e políticas que abalaram a Europa após a Primeira Guerra Mundial. Nesse cenário de desespero e desilusão com as democracias liberais, movimentos autoritários como o fascismo italiano e o nazismo alemão encontraram terreno fértil.
Ambos os movimentos compartilhavam um ódio visceral ao comunismo e ao socialismo e usaram o medo do “inimigo interno” para consolidar seu poder.
Os movimentos fascistas do século XX compartilhavam características comuns: nacionalismo exacerbado, autoritarismo, anticomunismo, antiliberalismo, militarismo, violência, propaganda e controle da mídia, supremacismo racial e anti-intelectualismo. Esses elementos permitiram a consolidação do poder absoluto, usando a censura, a propaganda e a repressão como ferramentas fundamentais.

Neofascismo digital do século XXI

Estamos testemunhando uma profunda transformação na estrutura do capitalismo global, uma fase que pode ser chamada de capitalismo digital.
Uma nova fase capitalista neofascista marcada pela crescente concentração de poder nas mãos de uma nova aristocracia financeira e tecnológica que controla vastos recursos econômicos e domina as tecnologias de informação e comunicação.
Em 2022, os 10 homens mais ricos do mundo possuíam mais riqueza do que os 3,1 bilhões dos mais pobres. Os 10% mais ricos da população mundial
arrecadam 52% da renda global, enquanto a metade mais pobre recebe apenas 8,5%. A metade mais pobre da população mundial possui 2% da riqueza total do mundo, enquanto os 10% mais ricos possuem 76%.
De acordo com a Forbes, há 141 bilionários a mais em 2024 do que em 2023 e 26 a mais do que o recorde estabelecido em 2021.
Além disso, os bilionários estão mais ricos do que nunca, com um valor agregado de US$ 14,2 trilhões.

Ascensão do neofascismo digital:

Esse contexto de desenvolvimento de uma nova fase capitalista propiciou o surgimento de ideologias extremistas ligadas aos interesses dessa nova aristocracia financeira e tecnológica, representada por figuras como Elon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos, que atuam ao lado de think tanks, organizações multilaterais, ONGs, corporações militares (Academi, Erick Prince), paramilitares e cartéis de narcotráfico, ligados a redes de partidos políticos de direita e extrema-direita.

Aristocracia financeira e tecnológica:

De acordo com o ranking da Forbes:

Bernard Arnault
: proprietário da LVMH, com 75 marcas no setor de moda e cosméticos (Louis Vuitton, Sephora, etc.). Fortuna de 233 bilhões de dólares.
Elon Musk: cofundador de seis empresas, incluindo a empresa automotiva Tesla e a empresa aeroespacial SpaceX, e comprou a rede social Twitter (rebatizada como X) em outubro de 2022. Fortuna de US$ 195 bilhões.
Jeff Bezos: fundador da gigante do comércio eletrônico Amazon, proprietário do The Washington Post e da Blue Origin, uma empresa aeroespacial que desenvolve foguetes Fortuna: 194 bilhões de dólares.
Mark Zuckerberg, proprietário da Meta (onde fundiu as plataformas do Facebook, Instagram e WhatsApp, entre outras). Patrimônio líquido de 177 bilhões de dólares.
Larry Ellison, presidente, diretor de tecnologia e cofundador da gigante de software Oracle. Patrimônio líquido de US$ 141 bilhões

Nova fase e neofascismo

Esse neofascismo difere de seus estágios anteriores pelo controle estratégico de tecnologias avançadas, que estão remodelando as relações sociais, políticas e econômicas.
Tecnologias como a Internet das coisas, a inteligência artificial, as redes 5G e 6G, o metaverso, a nanotecnologia e a robótica transformaram as plataformas digitais em “novas fábricas”, onde o capital explora o tempo de lazer e descanso, convertendo-o em tempo de produção.

Essa revolução tecnológica colonizou todos os aspectos de nossas vidas, transformando radicalmente a maneira como trabalhamos, nos relacionamos e participamos politicamente.

Ideologias extremistas:

Ascensão de figuras neofascistas em todo o mundo, articuladas no autodenominado Movimento Alt-Right Global e na ideologia neo-reacionária (NRX) autodefinida. Estas prestam homenagem a figuras como Benjamin Netanyahu (Israel), Donald Trump (EUA), Giorgia Meloni (Itália), Santiago Abascal (Espanha), Javier Milei (Argentina), Maria Corina Machado (Venezuela), Nayib Bukele (El Salvador), Jair Bolsonaro (Brasil), Volodimir Zelensky (Ucrânia), Marine Le Pen (França).
Esses líderes usam discursos populistas para legitimar regimes que promovem a repressão de movimentos sociais, a xenofobia, o racismo, a violência política e a violação dos direitos humanos, apelando para o medo, o terror e a insegurança como forma de legitimar planos de golpe e políticas antidemocráticas, ao mesmo tempo em que aumentam a lacuna da desigualdade econômica e garantem a pilhagem de recursos.

Intolerância e discurso de ódio:

O neofascismo, como a nova fase do fascismo, perpetua e aprofunda a violência contra as mulheres e a diversidade, exacerbando as desigualdades estruturais geradas pelo capitalismo, pelo racismo e pelo patriarcado. Esse sistema de opressão se reflete no desaparecimento forçado de mulheres líderes políticas e ativistas feministas, bem como nos altos índices de feminicídios, estratégias que buscam disciplinar e silenciar aquelas que lutam pela justiça social.

A feminização da direita e o uso de figuras femininas pelos fascismos e neofascismos são táticas criadas para manipular e legitimar políticas reacionárias.
Nesse contexto, é fundamental articular globalmente um programa popular, revolucionário, antipatriarcal, anticapitalista, antirracista, anticolonialista, antissionista e antifascista. Somente assim será possível rejeitar as políticas que promovem a exclusão, o racismo e a xenofobia como ferramentas de dominação.

Redes sociais e guerra cognitiva:

Vivemos em uma época em que as tecnologias digitais desempenham um papel central. As redes sociais e as plataformas de mídia são a arena central para a manipulação de percepções e alienação social. A chamada “quarta revolução industrial” promove a apropriação e a utilização de desenvolvimentos científicos e tecnológicos para a fragmentação das sociedades e a guerra cognitiva, por meio de algoritmos que buscam perpetuar a dominação de uma elite global com seu epicentro no “Ocidente”.

Redes sociais e guerra cognitiva:

A vida on-line, marcada pela dissociação emocional, facilita o distanciamento dos efeitos de suas ações, muitas vezes servindo como uma ponte para a violência na realidade.

Think tanks e centros de pesquisa, organizados em redes globais, usam dispositivos digitais para conduzir campanhas de influência, com mensagens segmentadas que afetam a subjetividade individual e coletiva.

A necessidade de tornar visível e abordar o agravamento dos problemas de saúde mental. Incidência de transtornos ansiosos e depressivos, vícios, apatia e suicídio de jovens.

Importância da construção e articulação de ferramentas que permitam aos jovens enfrentar a manipulação das plataformas digitais, por meio da reflexão crítica e da luta coletiva.

Juventude e guerra cognitiva:

O neofascismo digital busca despolitizar as gerações mais jovens por meio do uso de telas, promovendo o individualismo e a hiperfragmentação social, o consumismo irracional, a meritocracia e a negação da historicidade.

As novas tecnologias são usadas para propaganda e desinformação em massa e para a construção de um inimigo interno que se torna um “nós contra eles”, explorando o medo e a desumanização dos outros seres humanos
Ela tenta desvinculá-los de suas identidades culturais e patrióticas, dos valores comunitários e do cuidado com a vida. O objetivo é fragmentar o tecido social e alienar os jovens das lutas coletivas, enfraquecendo sua capacidade de reagir às injustiças do sistema.

Neocolonialismo 2.0:

O modelo de morte que o capitalismo está aprofundando nessa nova fase se reflete claramente no genocídio sionista e fascista contra Gaza. Isso aumentou o conflito no Oriente Médio, com um “eixo de resistência” que luta na linha de frente em solidariedade ao povo da Palestina.

Dia após dia, o povo palestino resiste, sustentado por laços de solidariedade internacional, diante do regime fascista que busca esmagar sua dignidade e apagar sua existência, personificado na figura do primeiro-ministro sionista Benjamin Netanyahu. É fundamental entender e tornar visíveis as conexões entre o sionismo e o fascismo, identificando suas novas expressões, como parte do reconhecimento do inimigo comum dos povos do mundo.

Neocolonialismo 2.0:

A intervenção imperialista da OTAN na Ucrânia, com o apoio das potências ocidentais, transformou o país em um campo de batalha geopolítico. Nesse cenário, Volodymir Zelensky emergiu como joguete do imperialismo.

Na África, o neocolonialismo europeu está passando por um momento de grandes derrotas. Os povos do mundo estão vendo com entusiasmo o surgimento da Confederação dos Estados do Sahel, entre Mali, Níger e Burkina Faso.
Na América Latina e no Caribe, os ataques dirigidos contra a República Bolivariana da Venezuela, juntamente com as recentes tentativas de golpe nas repúblicas irmãs de Honduras, Colômbia e Bolívia, são evidências de uma ofensiva neofascista e neocolonial na região.

Neocolonialismo 2.0:

A guerra econômica inflige violência em vários países, especialmente em Cuba e na Venezuela. Na Argentina, a ascensão abrupta de Javier Milei à presidência é um fenômeno neo-reacionário dentro da nova estrutura econômica e política global.
As milícias irregulares, ligadas ao tráfico de drogas, são um verdadeiro drama em algumas regiões do México, Colômbia, Equador e no chamado “triângulo norte” da América Central - Guatemala, Honduras e El Salvador. No entanto, toda a região está sofrendo com o aumento da violência do tráfico de drogas.

 

A Internacional Antifascista (IA)

É necessário criar uma Internacional Antifascista para coordenar os esforços dos movimentos sociais e políticos em defesa da democracia popular e proativa, da justiça social e dos direitos humanos em nível global.
Essa frente coletiva de luta não deve apenas confrontar o neofascismo nas esferas política, de rua e ideológica, mas também deve usar as ferramentas tecnológicas do espaço digital para combater a guerra multidimensional e cognitiva em curso.

A Internacional Antifascista como um espaço para a articulação de lutas anticapitalistas, anti-imperialistas, anticolonialistas, anti-patriarcais e anti-racistas.

Consolidar uma ofensiva coordenada que promova os valores da justiça social, da paz, da soberania e da autossuficiência.

Solidariedade global e lutas territoriais:

A proposta de construir uma Internacional antifascista inclui a criação de agendas setoriais, capítulos regionais e nacionais, bem como múltiplas redes de solidariedade global para enfrentar o ressurgimento do fascismo.
Isso implica uma articulação internacional de estratégias de luta, envolvendo todas as organizações políticas, sociais, culturais, feministas, sindicais e culturais em toda a extensão do planeta.

É fundamental entender esse capitalismo digital e suas novas formas de exploração do trabalho humano e do conhecimento. O tempo de lazer comum é agora um novo campo de extração de mais-valia.

Capítulos por região e país: construindo agendas concretas nos cinco continentes para enfrentar a ameaça do fascismo.

 

 

 

25/09/2024

REINALDO SPITALETTA
Matar com inteligência artificial

Reinaldo Spitaletta, Sombrero de mago,24/9/2024
Traduzido por
Helga Heidrich, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

A ciência, ou o que é definido como tal, e há várias abordagens, está a serviço da morte nessas épocas apocalípticas. Para a destruição, que é uma indústria, há uma grande inclinação e um terreno fértil, especialmente por parte dos países que dominam mercados, nações, pessoas, mediadores de vários níveis, que são seus peões. Heráclito disse (há poucas evidências disso) que a cultura envenena. O que envenena hoje é a política ou o prolongamento da política por outros meios, como a guerra.

 

Eu realmente queria matar todos os humanos, mas eles eles se anteciparam a nós. Charge de Ryan Beckwith

A inteligência artificial, as máquinas, a tecnologia, a alta velocidade em seu desenvolvimento, superaram o ser humano. O criador como escravo ou vítima. Um Doutor Frankenstein mais sofisticado. O que mais vale é destruir o outro, aquele que atrapalha a dominação de poucos sobre milhões. Estamos na praça, no cinema, no estádio, enfim, e de repente seu celular explode, ou seu pager, ou seu walkie-talkie, ou disparam contra você de um drone inesperado.

O novo terrorismo, que já tem muitas rugas e outros sinais de envelhecimento, é exercido pelas potências, pelo imperialismo. É claro que o mercado de bombas não se sente desconfortável com essas sutilezas. Os mísseis voam e podem, como no caso de Israel contra a Palestina, destruir uma população inteira, o que é chamado de genocídio, e nada acontece. Tudo permanece igual, o que é outra forma de continuar piorando.

A ciência, que, como em um conto de Wilde, destruiu fantasmas, é hoje uma presença espectral com seus dispositivos que parecem surgir do nada e podem cair do céu ou explodir sob o solo. Morte por controle remoto. Hoje não se trata, como em um antigo filme ianque, Universal Soldier, de reviver soldados mortos (como no caso da invasão imperialista dos EUA no Vietnã) e colocá-los, como autômatos, a serviço do terror, mas de aperfeiçoar armas, às vezes invisíveis.

Além dos métodos do Big Brother, uma distopia novelística que há muito se concretizou no mundo, há os métodos mais sofisticados de vigilância extrema, sutil e algorítmica; de classificação dos cidadãos; de penetração até mesmo na sopa para detectar um possível alvo para execução. E se eles forem agitadores, insurretos, que não engolem contos manipulados, tanto melhor. Eles devem ser abatidos, não mais com a vulgaridade de um envenenamento, mas com a perfeição de um raio da morte.

Em alguns casos, deploráveis e certamente contrários a toda lógica, é necessário usar foguetes mortais, bombas lançadas por aviões, o terror dos céus, não apenas para arrasar prédios, bairros, ruas, civis em massa, mas para apagar uma cultura, para não deixar vestígios do que poderia ter existido naquelas terras devastadas. E em outros, com mais “inteligência”, para selecionar aqueles que cairão pela interferência, se preferir, até “elegante”, de pequenos dispositivos que também cumprem o objetivo de matar, de suprimir.

A morte dos “inimigos” do Estado, ou de uma política, ou de uma intervenção em assuntos internos, tem assumido a forma de um jogo, de uma brincadeira macabra de Halloween. Além da biopolítica, caminhamos pelas sombrias trilhas da necropolítica, com a revelação de outras formas de crueldade, do perverso, de uma equação perfeita para eliminar pessoas, às vezes sem deixar nenhum “rastro de sangue na neve”.

Portanto, belisque-se, cidadão, você pode estar na mira, às vezes apenas para fazer parte de um castigo. Ou para um teste. Parte de um teste, de um experimento de poder para um exercício mortal. Tudo flui, disse o filósofo de Éfeso, também apelidado de O Negro, que postulou a “unidade dos opostos”. Bem, hoje devemos destruir os opostos, aqueles que se contradizem, aqueles que estão do outro lado do rio, o mesmo no qual ninguém se banha duas vezes.

A velocidade, que hoje é uma variável projetada para mil coisas, como lucros rápidos, uma transa rápida, uma leitura superficial, é hoje um truque para banir a reflexão, o pensamento, para deixar tudo nas aparências, para passar sem nenhum questionamento, e assim por diante, até formar um cidadão irrefletido, pouco emotivo, manipulável, que, é claro, também pode ser estourado com um celular.

Não sei se essa mistura que chamam de pós-modernidade, seja lá o que for, também contempla o assassinato de alta precisão como uma variável definitiva, como uma característica do mundo atual. Os territórios não precisam mais ser invadidos. Existem outras formas de ataque, à distância, sem a necessidade de sentir o cheiro do suposto inimigo, a vítima-alvo. A inteligência artificial e outras cúpulas tecnológicas fazem um “trabalho limpo”, asséptico, e dessa forma a ação não é tão horrível. Não temos que deixar um rastro de cadáveres, crianças mutiladas, mulheres despedaçadas, vilarejos em ruínas, o que também temos que fazer, é claro (aqui falam os carrascos), mas “para que desapareçam” ou, como nos velhos tempos, para fazê-los aprender a lição, daremos a eles uma morte menos barulhenta.

 

 

20/09/2024

FAUSTO GIUDICE
Guerra ao corpo, ao coração, aos olhos
ou
a destruição da humanidade pelo lítio piratado

Fausto Giudice, Tlaxcala, 19/9/2024
Traduzido por
Helga Heidrich

Israel, por meio de seus cibertentáculos armados, do Mossad e da Unidade 8200, inaugurou uma nova forma de guerra de terror que nenhum escritor de ficção científica jamais imaginou. Primeiro estágio: 3.000 beepers/pagers explodindo ao mesmo tempo no Líbano e na Síria. Segundo estágio: centenas de walkie-talkies explodem por sua vez. Os proprietários desses dispositivos e as pessoas próximas a eles foram despedaçados, aleijados, cegados e queimados. Uma bateria de lítio superaquecida pode atingir uma temperatura apocalíptica de mil graus Fahrenheit (537°C°).

Vamos esclarecer logo uma coisa: não, o Mossad não sequestrou um estoque de 5.000 dispositivos destinados ao Hezbollah para inserir uma carga explosiva (alguns dizem 3 gramas, outros 30 gramas). Ele simplesmente hackeou os pagers e fez com que suas baterias superaquecessem de forma explosiva. Quando aproximavam o dispositivo dos olhos para ler a mensagem, as pessoas visadas foram frequentemente queimadas no rosto, tiveram seus olhos arrancados e sofreram outras tragédias terríveis.

Por que a história de cargas explosivas inseridas em baterias foi tão amplamente divulgada? É óbvio: o setor que produz todos os tipos de dispositivos alimentados por baterias de lítio se viu diante da perspectiva de uma catástrofe global em questão de minutos. Se você pode explodir um pager ou um walkie-talkie invadindo-os, você pode explodir qualquer dispositivo conectado: telefone, computador, carro, robô dometico, usina de energia, bicicleta elétrica [ouvi relatos de bicicletas explodindo em garagens na Argentina] e... cigarro eletrônico [como os ucranianos fizeram com os soldados russos] etc. etc..

Pânico na Gold Apollo, a fabricante taiwanesa de pagers A924, mas também em todos os outros fabricantes, da Foxconn (iPhones) a Elon Musk (Tesla). A Gold Apollo não conseguiu pensar em nada melhor do que acusar uma pobre [bem, menos pobre do que eu] consultora siciliana radicada em Budapeste, onde dirige uma empresa de consultoria (principalmente para a UNESCO), de ter fabricado os A924s em questão sob licença. A mulher, Cristiana Arcidiacono-Borsany, de Catânia e formada pela London School of Economics, era, no máximo, uma intermediária entre os taiwaneses e o subcontratado, que ainda não foi identificado.

Portanto, não, o Mossad não sequestrou o lote de A924s a caminho do Líbano em pleno mar entre Budapeste e Beirute para prender 5.000 aparelhos, re-empacotá-los, colocar tudo de volta no contêiner e transportá-lo para Beirute (e por quais meios?). Ele simplesmente executou uma operação relativamente simples para invadir o aparelho. Antes disso, ele havia se envolvido em uma campanha de intoxicação com o objetivo de semear a paranoia nas fileiras dos combatentes libaneses, fazendo-os acreditar que ele havia assumido o controle de todos os celulares, a fim de levá-los a  preferir os pagers.

O principal objetivo desses atos de guerra é atingir, mutilar, matar e aterrorizar, sob a pele, no nível mais íntimo das pessoas e de seus entes queridos, pais, companheiros e vizinhos. O objetivo é óbvio: esmagar a resistência libanesa e enviar uma séria advertência a todos os membros do Eixo de Resistência, no Irã, no Iraque e no Iêmen, e a todos aqueles que possam ser tentados a se juntar a ele, do Marrocos às Filipinas, passando pelo Paquistão e pela Índia. Quanto aos palestinos, eles já aprenderam com a experiência e Yahya Sinwar e seus companheiros não usam nenhum dispositivo em rede há algum tempo.

Mas não são apenas os “orientais” que estão sendo alvo dessa operação de pirataria apocalíptica.  Os “ocidentais” também estão sendo visados, e não apenas pessoas comuns como você e eu, mas os grandes, os gordos, os poderosos, de Elon Musk a Jeff Bezos, os Drahi, os Kretinskys e os milionários chineses-taiwaneses, a grande família de viciados em lítio. A mensagem de Israel é clara: “Se você não fizer o que mandamos, nós o explodiremos”.

 

-Nós os remetemos a bombas à Idade da Pedra há uma década...
-E?
-Agora eles estão se comportando como malditos homens das cavernas!
-Incrível

Curtis LeMay, o general da força aérea ianque que queimou dois terços das cidades japonesas durante a Segunda Guerra Mundial e que ficou desapontado com a recusa de Kennedy em deixá-lo fazer o mesmo em Cuba, sugeriu em suas memórias de 1968 que, em vez de negociar com Hanói, os EUA deveriam “levá-los de volta à Idade da Pedra, bombardeando-os”, destruindo fábricas, portos e pontes “até que tenhamos destruído todas as obras do homem no Vietnã do Norte”. É com isso que os sioniilistas estão nos ameaçando hoje: “Nós ou o caos”.

Portanto, é hora, quem quer que sejamos, de pensar seriamente em como nos livrar dos dispositivos de lítio e (re)encontrar outras formas de comunicação: alguns sugerem a telepatia, outros os sinais de fumaça dos Sioux. Eu, por exemplo, optaria pelos bons e velhos pombos-correio. Qualquer outra sugestão é bem-vinda.

 

09/07/2024

HAMZA HAMOUCHENE
A psicologia da opressão e da libertação
O que Fanon diria sobre o genocídio em curso na Palestina?

 

Hamza Hamouchene, Africa is a Country, 28/6/2024
Traduzido por
Helga Heidrich, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Hamza Hamouchene é um pesquisador e ativista argelino que vive em Londres. Atualmente, é coordenador do programa da África Setentrional no Transnational Institute (TNI). @BenToumert

 

Para a Europa, para nós mesmos e para a humanidade... precisamos elaborar novos conceitos e tentar criar um novo homem.

 - Frantz Fanon, Os condenados da Terra


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03/06/2024

ARTURO ALEJANDRO MUÑOZ
Uma noite de terror, xixi e juramentos (fronteira Brasil-Uruguai, 1969)
Do Instituto Pedagógico do Chile democrático à USP da era da ditadura

Arturo Alejandro Muñoz, Politika, 30/5/2024

Traduzido por Helga Heidrich, editado por Fausto Giudice, Tlaxcala

Minha pior experiência, meu pesadelo mais horrível... Fui salvo por um milagre. Ainda choro quando me lembro daqueles dias trágicos, destruído por minha própria irresponsabilidade e ignorância ingênua sobre como uma ditadura realmente era e agia. Em 1973, eu faria novamente a mesma experiência no próprio Chile.

NO INÍCIO DE 1969, cheguei à USP (Universidade de São Paulo) como aluno livre para participar do curso de pós-graduação "História Econômica da América Latina no Século XX", proveniente do então famoso Instituto Pedagógico da Universidade do Chile.

Centro de alunos do Instituto Pedagógico em 1970.
Foto Fernando Velo

 

Fui designado a um quarto na ala de estagiários estrangeiros na enorme universidade de São Paulo, que dividia com Juan Carlos, um argentino, e Ricardo, um filipino. Fizemos uma grande amizade e formamos o grupo dos "três mosqueteiros", embora o "Che" estivesse estudando medicina e o asiático, engenharia.

 

Além disso, amigos que moravam em São Paulo me arranjaram um emprego como assistente de um patrão gringo (na verdade, ele era filho de suecos nascidos em Memphis, EUA) - o mestre Johan Erickson - em uma empresa de laticínios, o que me permitiu, alguns meses depois, sair do pensionato da USP e alugar um pequeno apartamento mobiliado na Avenida São João, além de comprar - é claro - um velho Fusca de 1964, na cor azul polar.


 

Eu não via meus antigos colegas de quarto com muita frequência, apenas os encontrava casualmente no enorme bandejão central da universidade, trocando palavras bem-humoradas e dando um abraço ou um aperto de mão, antes de cada um de nós seguir o caminho específico que nossas responsabilidades acadêmicas nos indicavam.

 

Cinco meses depois, terminei minha pós-graduação, mas não retornei ao Chile por causa da vida confortável que São Paulo havia me proporcionado, esquecendo-me de continuar meu último ano de estudos no Instituto Pedagógico. Minhas entranhas, naquele momento, recomendaram ao meu corpo que continuasse no Brasil por mais tempo.

 

Ricardo - o filipino - era um fanático por "Che" Guevara e ninguém podia falar mal do revolucionário argentino sem receber uma enxurrada de argumentos e considerações histórico-sociológicas, que escapavam de seus lábios com a mesma sequência com que uma metralhadora dispara seus tiros.

 

Ele estava convencido - assim como eu - de que as considerações explicitadas pelo agora mítico guerrilheiro constituíam, por si só, um legado político para a América Latina que deveria ser adotado por todos os homens bem-nascidos desta parte do planeta.

 


 

Nos últimos dois meses, o asiático vinha expressando seu desejo incontido de ler "O Diário do Che na Bolívia", publicado no Chile pela revista "Punto Final" e distribuído em toda a extensão daquele território democrático. Mas no Brasil isso era mais do que proibido. Ser flagrado com o famoso "Diário" era o mesmo que ir para o paredão, sem dó nem piedade.

 

Até hoje não consegui me explicar por que tive a maldita ideia de encomendar uma edição da revista "Punto Final" do Chile, sabendo que ela era publicada, nada mais nem menos, pelo Movimento de Esquerda Revolucionária - o MIR -, fato que não escapou ao conhecimento dos agentes de segurança do governo militar brasileiro.

 

Talvez tenha sido o hábito de desafiar a autoridade - muito típico dos estudantes universitários chilenos naqueles anos - ou, possivelmente, a confiança em minha boa estrela. Mas o fato é que cometi uma estupidez indigna de um profissional maduro, inteligente e cauteloso porque, talvez, me faltassem essas três qualidades.

 

Meu primo Javier, que agora é um próspero banqueiro na Austrália, enviou a pequena revista de Santiago por via aérea, escondida entre outros livros e publicações diversas. Peguei a encomenda nos escritórios da VARIG no centro da cidade e fui direto para o dormitório de Ricardo e Juan Carlos na pensão da USP. Não encontrando nenhum dos dois, resolvi deixar a publicação (embrulhada como presente) debaixo do travesseiro da cama do filipino, junto com um cartão que eu havia escrito lá mesmo, desejando-lhe um feliz aniversário de vinte e seis anos.

 

Eu tinha certeza de que esse presente emocionaria o asiático até as lágrimas, e não me equivoquei.

 

Estou convencido de que as vicissitudes do destino são predeterminadas com bastante antecedência pela mão de alguém muito poderoso, que guia nossos passos e limpa o caminho - ou o enlameia, conforme o caso - para que avancemos para a meta que nos foi designada e não para qualquer outro lugar que esteja fora das considerações divinas.

 

Deixei a revista "Punto Final" na sala de Ricardo por volta das duas horas da tarde de uma sexta-feira. Em seguida, fui ao escritório do Sr. Erickson para fazer meu trabalho de rotina, pensando em como e onde passaria o montão de tempo que me restava naquele fim de semana, já que dois dias antes eu havia terminado meu trabalho como aluno de pós-graduação na USP.

 

Na fábrica de laticínios, fiquei surpreso com as palavras do meu chefe, pois ele me informou que tiraria férias a partir da próxima segunda-feira e que sua esposa tinha preparado tudo para um período de trinta e cinco dias em Memphis, sua cidade natal.

 

O "gringo", educado como sempre, me entregou um régio cheque, ao qual juntou algumas notas de seu próprio bolso.

 

Volte a este escritório daqui a quarenta dias", disse ele, sorrindo afavelmente, "você também merece algumas semanas de folga.

 

Nós nos abraçamos com uma alegria civilizada e nos despedimos sem mais delongas.

 

Naquela mesma noite, eu disse a um grande amigo, Ademir Texeira, que tinha mais de um mês para ficar à vontade.

 

"Você sempre disse que seu maior desejo é viajar pelo rio Amazonas. Agora que você tem tempo e dinheiro, por que não viaja para Manaus e realiza seu sonho?"

 

Dito e feito. Deixei com ele as chaves do meu apartamento e do Volkswagen, depois de ter comprado uma passagem de avião para a distante cidade da borracha. O voo decolou do aeroporto de Congonhas às sete horas da manhã seguinte, sábado.

 

Passei mais de quatro semanas em Manaus, conhecendo a "bondade" da Amazônia... assunto que, aliás, é uma crônica à parte. No que diz respeito a esta história, uma vez terminada minha estada nesses lugares sublimes, tive de usar vários tipos de transporte para retornar à cidade industrial de São Paulo. Viajei de avião para Brasília e de lá, de ônibus, para o Rio de Janeiro.

 

Eu não tinha mais tempo para demoras e diversão, porque no Rio tive que embarcar no primeiro meio de transporte disponível: o trem noturno para São Paulo, na classe econômica, cercado por negros barulhentos e em um vagão sem luzes. Nenhum cobrador me pediu as passagens, pois era muito raro um branco (ou semibranco, como o abaixo-assinado) se aventurar nesses vagões.

 

Felizmente, minha pele é escura, porisso passei "despercebido" entre aqueles "crioulos" desordeiros. Para completar, uma mulher negra de lábios grossos me encarregou de cuidar suas duas "crianças", que dormiram ao meu lado durante toda a viagem, enquanto a mulher se requebrava no corredor ao ritmo do samba cantado por uns velhinhos engraçados de pele enrugada, equipados com caixas de fósforos e uma gaita. A noite foi uma festa contínua, uma verdadeira "escola do samba" que não cessou sua cadência lúdica durante toda a viagem. Ao amanhecer, o sono e o cansaço, causados pela batucada dos velhos, bateram na negra que adormeceu junto das "crianças pretinhas", que não tinham nenhum jeito de acordar em meio ao burburinho musical.

 

Enquanto isso, jurei que nunca mais faria uma viagem como aquela. Por terra e sem dinheiro.

 

Ah, nunca jure em vão, pois a mão de Deus é mais longa do que a esperança.

 

Na estação, peguei um táxi e fui para a casa do meu amigo Ademir, onde estavam meu Volkswagen e as chaves do apartamento.

 

MEDO

 

Assim que passei pelo portão do jardim da frente, percebi que algo ruim havia acontecido, pois Dona Severa, mãe de Ademir, olhou para mim como se tivesse visto um fantasma aparecer. Sem pudor, ela me arrastou para dentro de casa e me fez entrar em um dos quartos dos fundos, enquanto fechava a porta e fechava as cortinas das janelas. Em seguida, levou as mãos à boca e começou a soluçar.

 

Olhei para ela com a melhor cara de idiota que eu poderia ter naquela situação.

 

"Você tem que fugir do país", disse ela em voz alta, e continuou a chorar.

 

Depois de se recuperar de seu espanto inicial, ela me contou o que havia acontecido durante minha ausência. E foi realmente terrível e de partir o coração.

 

Meu amigo Ricardo, o filipino, havia sido preso pelos gorilas da "Segurança" em São Paulo. A polícia estava me procurando por toda a cidade. Fui acusado de ser um "agitador estrangeiro e marxista confesso". Meus dias estavam contados.

 

Dona Severa me contou sobre os acontecimentos que ocorreram na mesma tarde em que deixei sob o travesseiro de Ricardo a edição da revista "Punto Final", que publicava, na íntegra, o famoso "Diário de Che na Bolívia", que o filipino queria ler como se fosse a Bíblia de todos os revolucionários.

 

Estudante é preso em passeata na Avenida Ipiranga, Centro de São Paulo (SP), em 1968.  Arquivo Nacional, Correio da Manhã

Inesperadamente, e pela primeira vez naquele ano, a polícia da universidade realizou uma batida de rotina nos pensionatos dos estudantes às oito horas da noite.

 

Eles encontraram o "Diário do Che" sobre o pijama do Ricardo, ao lado do meu cartão de felicitações.

 

Uma operação conjunta da polícia e da "Segurança" foi imediatamente lançada para caçar Ricardo e Juan Carlos, o argentino. Ambos estavam na biblioteca da USP.

Em 1968, Exército apreende livros e material de protesto em diretórios acadêmicos de faculdades no Rio de Janeiro. Os nomes dos estudantes envolvidos foram entregues aos serviços de informação e repressão da ditadura para inquéritos e prisões. Arquivo Nacional, Correio da Manhã

Eles foram levados para o porão de um prédio próximo a Guarulhos, onde foram "interrogados" com a ferocidade e insanidade que as técnicas utilizadas para tortura permitiam.


Charge de Augusto Bandeira, Correio da Manhã, novembro de 1964


Na manhã seguinte - eu havia aterrissado em Manaus naquele momento - eles foram atrás de mim e revistaram meu apartamento, encontrando-o vazio e com sinais claros indicando minha viagem para um lugar que, a propósito, os agentes não conheciam ....

 

Foram até a empresa de laticínios onde eu trabalhava como assistente de um gringo, que também estava fora do Brasil na época; Ricardo, na sala de "interrogatório", havia mencionado que aquele era o meu local de trabalho. Obviamente, também não conseguiram me encontrar lá.

 

Mas a caçada já havia começado, pois meus dois amigos, como única forma de amenizar a saga de torturas e espancamentos, colocaram sobre meus ombros a responsabilidade por aquele ato ("trazer material terrorista para o país"), que era considerado "altamente ilegal" pela ditadura brasileira.

 

Os aeroportos foram bloqueados para mim naquela tarde, e meu nome apareceu muito brevemente em um noticiário de TV.

 

Posse do presidente Costa e Silva em 15.03.1967


Assustado, Ademir escondeu meu Volkswagen no quintal da fábrica de botões de Gaspar, sobrinho de Dona Severa, que era um direitista declarado e participava de grupos de análise política de apoiadores declarados do ditador Costa e Silva. Ninguém me procuraria lá, e Gaspar foi informado imediatamente por Ademir sobre a situação em questão, e seu primo empresário aceitou o assunto com coragem e solidariedade.

 

"Você precisa sair do Brasil agora mesmo", insistiu Dona Severa. Se o pegarem aqui, você é um homem morto.

Charge de novembro de 1968 sobre o início das atividades do Esquadrão da Morte em São Paulo. A charge sugere a cooperação entre o Esquadrão da Morte (E.M.) com os grupos terroristas Comando de Caça aos Comunistas (C.C.C.) e Movimento Anticomunista (M.A.C.) Arquivo Nacional, Correio da Manhã

 

A FUGA

 

Ademir me pegou à tarde e me levou para a casa de Gaspar escondido no banco de trás de seu carro. Eu me senti como um judeu fugindo da SS em Hannover, sem um centavo no bolso e impedido de ir ao banco para sacar algum dinheiro. Eu estava à mercê da vontade de meus amigos, cujos rostos mostravam a ansiedade que só o medo pode representar.

 

Gaspar me abrigou em um pequeno cômodo que ele usava para guardar ferramentas e sucata, na última escuridão de sua casa.

 

Às onze horas da noite, eles me tiraram do esconderijo para me levar a um lugar mais seguro. Por meio de outro amigo, Magrela, que trabalhava na APSA (Aerolíneas Peruanas), onde havia alcançado o cargo de chefe do balcão da companhia aérea no aeroporto de Congonhas, eles conseguiram entrar em contato com o consulado chileno em São Paulo.

 

O maldito cônsul não se interessou pelo meu problema e preferiu deixar o caso nas mãos das autoridades locais, argumentando que se tratava de uma questão puramente policial.

 

Jurei que nunca votaria em um candidato democrata-cristão no Chile. O governo de Eduardo Frei Montalva estava sendo mesquinho com seu apoio em um momento em que minha vida estava correndo grande perigo.

 

Ademir e Gaspar me deixaram no primeiro andar do prédio onde morava Pascual, um espanhol que trabalhava como secretário administrativo no Consulado.

 

Esse espanhol tinha sua própria história, cheia de perigos passados e batalhas antigas, mas, mais importante, ele conhecia em primeira mão o sabor da derrota e da fuga, pois em seu país natal ele foi perseguido até a morte por elementos "carlistas" que lutavam na guerra civil ao lado de Francisco Franco.

 

Ele conseguiu escapar por milagre, atravessando a fronteira no meio dos Pirineus. Da França, ele foi levado para a Argentina. Na época, Pascual tinha 23 anos de idade. Ele trabalhou no porto de La Boca como carregador, depois como despachante e, por fim, conseguiu o cargo de assistente de serviço na Embaixada do Chile em Buenos Aires. Anos de trabalho árduo e estudos noturnos permitiram que ele chegasse ao cargo de secretário.

 

Ele havia sido destacado para o Consulado do Chile em São Paulo apenas sete meses antes.

 

Felizmente, ele costumava viajar na APSA, atendida pelo próprio Magrela. Portanto, eles eram amigos.

 

Pascual era solteiro, morava sozinho e tinha cargo diplomático. Ele e sua família tinham imunidade.

 

Contei-lhe em detalhes os trágicos acontecimentos e ele se dispôs a me ajudar a sair do Brasil. Ele falou muito mal dos governos sul-americanos, descrevendo-os como "atrasados de gravata". Disse uma frase que me impressionou profundamente:

 

"Os filhos da Espanha não conseguiram abandonar sua predileção por desfiles, pelo garrote e pelo patrão. Veja o Chile. Seu povo sempre foi uma colônia. Primeiro dos incas e seu império, depois da Espanha e do rei, depois dos oligarcas ingleses e agora dos "ianques". Esse seu país deve uma revolução à sua história."

 

O "cara" era simpático e esclarecido também. Devo acrescentar "extremamente solidário", pois ele se encarregou de estruturar minha fuga passo a passo, pesquisando horários e combinações de ônibus para o Uruguai. Ele também conseguiu (não sei como) sacar algum dinheiro de minha conta bancária por meio de um documento simples que assinei em seu próprio apartamento.

 

Finalmente, em uma tarde de quinta-feira, Pascual tinha tudo pronto. Ele tinha feito tudo atrás das costas do cônsul, colocando em risco um futuro profissional seguro e confortável, mas o fez porque alguém tinha que fazer isso.

 


"Você viajará por terra, nesta mesma noite, na linha 'Pluma' até Porto Alegre. Lá, será transferido para o ônibus uruguaio da empresa "Onda" que vai para Montevidéu. Eles o procuram nos aeroportos, não nas rodoviárias. Você atravessará a fronteira com o Uruguai no Chuí; isso será por volta da meia-noite de depois de amanhã. Você conhece o Chuí?"

 

Assenti com a cabeça, com um vago gosto de possível morte brincando nas paredes internas de minhas bochechas.

 

Eu havia estado naquele pequeno e simpático vilarejo meses antes, em uma rápida viagem ao lado uruguaio para revalidar minha "Carteira 19", um tipo de visto que os brasileiros exigiam dos estrangeiros. Eu me lembrava com certa precisão da estranha vida que havia ali. Uma rua larga e empoeirada separava o Uruguai do Brasil. Havia lojas com placas em espanhol e português em cada calçada. As pessoas caminhavam livremente "de um país para o outro", pois duas alfândegas ficavam nos arredores da cidade, nas entradas norte e sul. Esse era o Chuí. Uma faixa no pampa, uma irrupção de cor na vasta paisagem plana, um pequeno ponto na distância.

 

"Bem, então evitarei ter que fazer desenhos no papel", disse Pascual, acrescentando mistério às suas próximas palavras. O ônibus chegará diretamente no lado sul do Chuí, contornando a cidade e parando a vinte metros da alfândega uruguaia, em frente a um posto militar brasileiro. Os passageiros estarão sonolentos, então o condutor descerá do ônibus para que os militares verifiquem e carimbem a lista com os nomes dos viajantes. O ônibus seguirá imediatamente para o território uruguaio, estacionando na alfândega, onde os procedimentos de entrada são mais demorados.

 

Ele fez uma pausa, anunciando para mim a chegada do perigo. Ele agarrou meu braço e se lançou pelo escorregador de advertência que fez minha pele arrepiar.

 

"Se os militares ordenarem que as luzes internas do ônibus sejam acesas e pedirem aos passageiros que desembarquem, isso significa..."

 

"É o que?" -perguntei com espanto.

 

"Que eles vão prender você...". Ele me olhou com profunda seriedade, tentando saber o grau de pânico que minha covardia era capaz de atingir; embora eu estivesse tremendo como um pudim de gelatina, Pascual continuou a me treinar para esse eventual momento de risco.

 

"Não faça nenhuma besteira. Eles não têm sua foto, tenho certeza disso, então você pode se misturar ao resto dos passageiros. Saia do ônibus com absoluta calma e caminhe lentamente em direção ao posto militar. Pare acerca de quatro metros da entrada e deixe que outras pessoas entrem no local. Aja como louco. Acenda um cigarro ..... Você fuma, não é? .... Bem, aproveite, ou finja que está aproveitando, o sabor do tabaco e o ar noturno.

 

"Tenho certeza", gaguejei, "mas, em algum momento, serei forçado a entrar".

 

"Você não pode fazer isso. Assim que você ver os soldados fazendo o possível para ajudar os passageiros a entrar naquele escritório, corra..."

 

"Eu correr? Para onde?", gemi.

 

"Em direção da alfândega uruguaia, que fica a vinte metros dali, em linha reta. Corra como se o diabo estivesse atrás de você. Sua vida está em jogo, meu rapaz. Assim que você chegar aos uruguaios, grite pedindo asilo político."

 

"Será que vou conseguir?"... meu corpo inteiro parecia tremer de medo.

 

"Imediatamente, puxa vida, imediatamente".


 

A NOITE DA FUGA E DA VERGONHA

 

A viagem para Porto Alegre foi um pesadelo. Eu não pestanejava e suava como um homem gordo em um banho turco. Toda vez que o "Pluma" parava em algum lugar, meus esfíncteres ameaçavam se romper.

 

Fiz uma rápida transferência para o ônibus "Onda" e peguei o primeiro assento na porta. Não me lembro nem da cara do passageiro ao meu lado. Eu estava exausto da viagem de dezoito horas desde São Paulo e tinha mais dezoito horas para chegar à fronteira.

 

Acho que cochilei um pouco.

 

Chegamos no Chuí à uma e meia da manhã. A cidade estava dormindo sob um impressionante manto de estrelas.


 

O ônibus parou em frente à barreira do posto brasileiro. Três soldados se aproximaram de nós. O condutor falou com eles e entrou no galpão que servia de escritório. Eu estava suando como um cavalo de tração. Senti pressa de urinar e ondas de nojo subiam pelo esôfago até a garganta. Pensei no Chile. Senti saudades da minha rua e dos meus pais, enquanto amaldiçoava "Che" por ter escrito um maldito diário de campanha.

 

O condutor voltou em um ritmo acelerado. Ele veio sem a lista. Ele acendeu as luzes e, com um forte bater de palmas, ordenou que todos os passageiros descessem do ônibus.

 

Fui descoberto!!!

 

Desci tremendo de pânico em meio aos passageiros que protestavam ruidosamente por terem sido forçados a sair ao relento no frio da noite. Deixei sete ou oito deles entrarem no posto, ladeados pelos militares.

 

Parei e acendi um cigarro. Minhas mãos tremiam na escuridão.

 

As luzes da alfândega uruguaia eram claramente visíveis a UMA QUADRA DE DISTÂNCIA. Uma quadra. Cem metros. "Eles vão me encher de balas", eu choramingava internamente.

 

Um dos soldados se aproximou de mim rapidamente, fixando o olhar em minhas mãos. Ele agarrou meu ombro e me puxou para o ponto onde havia alguma luz. Aí, eu me molhei.

 

"O senhor tem um cigarro pra gente?"

 

Passei a ele o pacote do "Minister" sem me dar conta, automaticamente. O homem uniformizado me agradeceu com uma reverência profunda, colocou o rifle sobre o ombro e começou uma conversa fiada, enquanto eu ouvia uma reportagem esportiva que vinha do rádio que os guardas uruguaios tinham ligado no volume máximo.

 

Não entrei no posto brasileiro porque o soldado me reteve ao lado dele, puxando conversa. Pude ver o condutor entrando e saindo do ônibus com um balde, panos, uma vassoura e folhas de jornal.

 

Senti o cheiro de minha própria urina. Eu estava apavorado, esperando ouvir o mandado de prisão e receber uma enxurrada de golpes e insultos.

 

Pensei em Ricardo e Juan Carlos, nus na "grelha", resistindo à morte que viajava dentro de um cabo elétrico. Será que eu teria suportado tal tortura?

 

"Todos os passageiros devem embarcar no ônibus", gritou o motorista. Estamos muito atrasados.

 

As pessoas iam embarcando no ônibus com uma calma que deixou meus nervos ainda mais à flor da pele. Despedi-me do soldado e corri para o ônibus. Sentei-me em minha própria vergonha e enterrei o rosto em minhas mãos para soluçar baixinho.

 

Por que nos ordenaram que saíssemos o ônibus e depois nos permitiram sair sem problemas?

 

Uma menina de cinco ou seis anos havia vomitado na parte de trás do ônibus, então o condutor aproveitou a parada no posto brasileiro para limpar os despojos enquanto eles controlavam a lista de passageiros.

 

E eu tinha me urinado por nada!!!!

 

Com a umidade do meu pavor cheirando a amoníaco, peguei minha mala e pedi permissão aos uruguaios para tomar banho no banheiro disponível ao público.

 

Banhado, barbeado e com roupas limpas, saí para respirar o ar de liberdade do Chuí-leste. Aproximei-me da cabine para falar com os guardas, a quem perguntei, com a melhor cara de inocente que pude, sobre o jogo de futebol que estava sendo transmitido naquele momento.


 

"É a reprise do jogo entre o Peñarol e o Flamengo", disse um deles, consolando-se com algo que eu não conseguia entender. “Eles jogaram ontem à tarde, no Rio de Janeiro. O Peñarol deu um baile nos negros. Ganhou de 3x0. Aumentamos o volume para que nossos colegas do outro lado sofressem um pouco”.

 

Eu ria junto com aqueles homens de aparência dura e bigodes grossos. Era lindo sentir-se completo e livre.

 

Viva o Uruguai, viva Artigas, viva Peñarol!!!!

 

Cinco dias depois, com a mala na mão, toquei a campainha da casa dos meus pais, no meio da Avenida Vicuña Mackenna, em Santiago do Chile.

 

Arturo Alejandro Muñoz (Curicó, Chile, 1945)

Professor de história e assistente social (ambos da Universidade do Chile).

Escritor e colunista.

Autor dentre outros de “Señor concejal”, “El honor de un cobarde”, “La casa Roschauffen”, “Con los ojos de mi padre”, “Los hombres de la Cimitarra” e “Tres hilos para una aguja”.

Foi membro do Comando Nacional dos Trabalhadores (CNT) em 1983-1985 na luta contra a ditadura militar.

Atualmente, vive em Coltauco, região de O'Higgins. @artamumu