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06/12/2025

A corrida pelos minerais críticos está a colocar o planeta em risco

Johanna Sydow  e Nsama Chikwanka, Project Syndicate, 5/12/2025

Traduzido por Tlaxcala

Johanna Sydow  é diretora da Divisão de Política Ambiental Internacional da Fundação Heinrich Böll (Alemanha).
Nsama Chikwanka é diretor nacional da Publish What You Pay Zambia.

À medida que os governos enfraquecem as proteções ambientais para promover novos projetos mineiros, a corrida global pelos minerais críticos aprofunda as divisões sociais e prejudica ecossistemas vitais. Apenas a redução do consumo e a criação de regras robustas e aplicáveis podem evitar danos duradouros e proteger os direitos humanos fundamentais.


Vista dos restos desmontados de um acampamento ilegal de mineração de ouro, “Mega 12”, durante uma operação policial destinada a destruir maquinaria e equipamentos ilegais na floresta amazónica, na região de Madre de Dios, no sudeste do Peru, em 5 de março de 2019. — A mineração ilegal de ouro na Amazónia atingiu proporções “epidémicas” nos últimos anos, causando danos a florestas intocadas e cursos de água e ameaçando comunidades indígenas. Foto GUADALUPE PARDO / POOL / AFP via Getty Images

BERLIM – O custo ambiental e humano da extração mineral torna-se a cada dia mais claro – e mais alarmante. Cerca de 60% das vias fluviais do Gana estão hoje fortemente poluídas devido à mineração de ouro ao longo das margens dos rios. No Peru, muitas comunidades perderam o acesso à água potável depois de as proteções ambientais terem sido enfraquecidas e os controlos regulatórios suspensos para facilitar novos projetos mineiros, contaminando inclusive o rio Rímac, que abastece a capital, Lima.

Essas crises ambientais são agravadas pelo aprofundamento da desigualdade e das divisões sociais em muitos países dependentes da mineração. O Atlas Global de Justiça Ambiental documentou mais de 900 conflitos relacionados com a mineração em todo o mundo, dos quais cerca de 85% envolvem o uso ou a poluição de rios, lagos e águas subterrâneas. Neste contexto, as grandes economias estão a remodelar rapidamente a geopolítica dos recursos. Os Estados Unidos, enquanto tentam estabilizar a economia mundial baseada em combustíveis fósseis, também correm para garantir os minerais necessários para veículos elétricos, energias renováveis, sistemas de armas, infraestrutura digital e construção – muitas vezes por meio de coerção ou táticas agressivas de negociação. Na sua tentativa de reduzir a dependência da China, que domina o processamento de elementos de terras raras, considerações ambientais e humanitárias estão a ser cada vez mais deixadas de lado. A Arábia Saudita também procura posicionar-se como uma potência emergente no setor mineral no âmbito dos seus esforços para diversificar a economia para além do petróleo, estabelecendo novas parcerias – inclusive com os EUA – e acolhendo uma conferência mineira de grande visibilidade. Simultaneamente, o Reino tem minado ativamente progressos noutros fóruns multilaterais, incluindo a Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas no Brasil (COP30) e as pré-negociações em curso da Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA7).

Na Europa, grupos industriais fazem lobby a favor de mais desregulamentação, enquanto empresas de combustíveis fósseis como ExxonMobil, TotalEnergies e Siemens recorrem a táticas enganosas para enfraquecer os novos mecanismos concebidos para proteger os direitos das comunidades em regiões produtoras de recursos. Devemos preocupar-nos com o facto de as empresas e países que contribuíram para o aquecimento global, a degradação ambiental e as violações dos direitos humanos procurarem agora dominar o setor mineral. Permitir que isso aconteça colocaria toda a humanidade em risco, não apenas as populações vulneráveis.

Os governos não podem permanecer passivos. Devem recuperar a responsabilidade de orientar o principal motor da expansão mineira: a procura. Reduzir o consumo de materiais, especialmente nos países desenvolvidos, continua a ser a forma mais eficaz de proteger ecossistemas vitais e evitar os danos a longo prazo que a extração inevitavelmente causa.

Ainda assim, apesar das amplas evidências de que o aumento da extração de recursos ameaça o abastecimento de água e a segurança pública, governos de todo o mundo estão a enfraquecer as proteções ambientais na tentativa de atrair investimento estrangeiro, colocando assim em perigo os próprios ecossistemas que sustentam toda a vida na Terra. Do ponto de vista económico, esta estratégia é profundamente míope.

De facto, pesquisas recentes mostram que práticas responsáveis não são apenas moralmente corretas, mas também economicamente sólidas. Um novo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, baseado em cinco anos de dados de 235 multinacionais, demonstra que empresas que reforçam o seu historial em direitos humanos tendem a apresentar melhor desempenho a longo prazo. Os governos devem, portanto, desconfiar da alegação da indústria de que a rentabilidade exige o retrocesso de regulamentações ambientais ou a negligência dos direitos humanos. Quando as pessoas não conseguem confiar que os líderes políticos protegerão os seus direitos, é muito provável que resistam, e o conflito social resultante faz com que o investimento diminua. A reação contra o projeto de mineração de lítio Jadar, da Rio Tinto, na Sérvia, é um exemplo emblemático. Muitos sérvios acreditavam que o governo estava a colocar os interesses empresariais em primeiro lugar ao avançar com um projeto que não cumpria sequer os padrões básicos de sustentabilidade. A indignação pública travou o desenvolvimento e deixou a empresa a braços com perdas significativas.

Apenas quadros jurídicos robustos, apoiados por uma aplicação eficaz, podem criar as condições para um desenvolvimento estável e que respeite os direitos. Isso significa salvaguardar os direitos dos povos indígenas; garantir o consentimento livre, prévio e informado de todas as comunidades afetadas; proteger os recursos hídricos; realizar um ordenamento do território que estabeleça zonas proibidas; e conduzir avaliações de impacto social e ambiental que sejam independentes, participativas e transparentes.

Dadas as tensões geopolíticas crescentes, fóruns multilaterais como a COP e a UNEA continuam essenciais para contrariar a fragmentação global e promover soluções partilhadas. Países ricos em minerais devem trabalhar em conjunto para elevar os seus padrões ambientais, tal como países produtores de petróleo influenciam coletivamente os preços globais. Por meio da ação coletiva, podem impedir uma corrida destrutiva rumo ao abismo e garantir que as comunidades locais – especialmente povos indígenas e outros titulares de direitos – sejam ouvidas.

Num momento em que a água potável se torna mais escassa, os glaciares derretem e a agricultura enfrenta ameaças crescentes, a ação internacional coordenada já não é opcional. A resolução apresentada pela Colômbia e Omã para a UNEA de dezembro, apelando a um tratado vinculativo sobre minerais, representa um passo importante rumo a padrões globais mais justos. Iniciada pela Colômbia e copatrocinada por países como a Zâmbia, que conhecem demasiado bem os custos das indústrias extrativas, a proposta exige cooperação ao longo de toda a cadeia de produção mineral para reduzir os danos ambientais e proteger os direitos dos povos indígenas e de outras comunidades afetadas. Ao atribuir responsabilidade aos países consumidores de recursos, pretende garantir que o fardo da reforma não recaia exclusivamente sobre as economias produtoras. Importa notar que também aborda os perigos representados pelas barragens de rejeitos e outros resíduos mineiros, que já provocaram falhas devastadoras e centenas de mortes.

Conjuntamente, estas medidas oferecem uma rara oportunidade para começar a corrigir as desigualdades que há muito caracterizam a extração mineral. Todos os países – especialmente os produtores de minerais que historicamente foram excluídos das negociações – devem aproveitar este momento. A UNEA7 abre uma janela para a concretização da justiça no domínio dos recursos.

20/11/2025

Argentina, laboratório e espelho do mundo
Como transformar um povo de comedores de carne em veganos transgênicos

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A estação de metrô Argentine, em Paris, chamava-se até 1948 Obligado, em comemoração à vitória argentina de 20 de novembro de 1845, quando a Confederação Argentina infligiu uma derrota decisiva às forças anglo-francesas na Vuelta de Obligado, no rio Paraná. Tornado feriado com o nome de Dia da Soberania Nacional em 1974, o dia 20 de novembro foi transferido este ano para o dia 24 de novembro, para permitir um fim de semana prolongado do dia 21 ao dia 24, um presente do governo Milei para a indústria hoteleira e turística. Nesta ocasião, publicamos um pequeno livro que explica o quanto a “soberania nacional” argentina está em mau estado. Apresentação abaixo.

“ No território mais rico do planeta vive um povo pobre, mal alimentado e pago com salários miseráveis. Enquanto os argentinos não recuperarem para a nação e para o povo o controle sobre nossas riquezas, não seremos uma nação soberana nem um povo feliz. ”
Arturo Jauretche (1901-74)

Nesta coletânea, encontram-se três artigos publicados em outubro e novembro de 2025 sobre a involução e os desafios da crise catastrófica que atravessa a Argentina, país que foi o “celeiro do mundo” no século passado e que hoje se tornou o lixo transgênico do mundo. Cerca de 18 milhões de hectares (com variações anuais) – metade da superfície dedicada às “grandes culturas” – são dedicados ao cultivo de soja transgênica, um cereal verdadeiramente diabólico que agora “alimenta” não só as vacas e os porcos de metade do planeta, a começar pela China e Israel, mas também as crianças das escolas do Rio da Prata à Terra do Fogo.

Os argentinos, os maiores consumidores de carne do mundo depois dos norte-americanos, já não podem pagar a carne de que tanto gostam para os seus asados, a versão rioplatense do churrasco ou do michuim. Sete em cada dez crianças argentinas não têm o que comer. Javier Milei, o homem da motosserra, não é o único responsável por essa catástrofe, ele é apenas o executor das tarefas sujas, a serviço dos ianques e seus comparsas do Banco Mundial e do FMI. Os chineses desempenham um papel nada insignificante no jogo de blefe que se joga às custas dos pobres e dos empobrecidos. Eles levaram à letra o lema do camarada Deng Xiaoping: “Não importa se o gato é preto ou branco, o essencial é que ele caça o rato”. Todos nós somos potenciais ratos argentinos. Leia e você entenderá.

SUMÁRIO

  1. Argentina: laboratório da pobreza sob tutela americana

  2. A guerra da soja: anatomia de uma semente
    Como a soja, entre a China, os Estados Unidos e o Brasil, se tornou o motor oculto do comércio mundial

  3. A semente, a besta e a dívida
    A Argentina, sua soja, sua carne e sua dívida na nova ordem alimentar mundial

Baixe o livro

06/10/2025

RICARDO MOHREZ MUVDI
Quando a causa palestina se torna conveniência

Ricardo Mohrez Muvdi, 6/10/ 2025
Traduzido por Tlaxcala

Ricardo Mohrez Muvdi é palestino, nascido em Beit-Jala, Palestina (1952). Refugiado na Colômbia, é administrador de empresas e presidente da União Palestina da América Latina (UPAL), criada em 2019 em San Salvador, El Salvador. Também é presidente da Fundação Cultural Colombo-Palestina.

Muitos descendentes palestinos, filhos e netos daqueles que foram expulsos de sua terra natal pela ocupação, costumam se declarar defensores da causa palestina. No entanto, essa lealdade muitas vezes se desfaz quando a causa entra em conflito com seus interesses pessoais, econômicos ou políticos. Nesse momento, a memória histórica se torna um enfeite usado quando convém, mas guardado na gaveta quando incomoda.


A diferença em relação ao sionismo é abissal. O sionista, independentemente do custo humano ou da verdade histórica, jamais hesita em apoiar o Estado genocida de Israel. Faz isso com cegueira ideológica, disciplina e uma coerência que beira a cumplicidade. Enquanto isso, alguns descendentes palestinos preferem se calar, se acomodar ou até justificar o opressor quando sentem ameaçadas suas posições de privilégio.

A causa palestina não é um slogan para redes sociais nem um símbolo cultural vazio exibido com uma keffiyeh em uma foto condescendente. A causa é resistência, dignidade, justiça e memória de um povo que continua sendo massacrado, despojado e silenciado. Não admite duplos discursos nem silêncios covardes.

O sionismo entendeu que sua força reside na unidade sem fissuras, ainda que seja uma unidade em torno do crime. A Palestina, por sua vez, precisa que seus filhos e netos estejam à altura do sacrifício de seus pais e avós. Não se trata de viver na nostalgia, mas de manter a coerência: estar com a Palestina sempre, mesmo que isso implique desconforto, perda de contratos, amizades ou favores políticos.

A verdadeira lealdade não se mede quando apoiar a Palestina é fácil, mas quando isso tem um custo. Essa é a diferença entre os que transformam a causa em bandeira de vida e os que a reduzem a um acessório passageiro.

Porque a Palestina não é uma moda nem uma lembrança: é uma ferida aberta que nos reclama dignidade e ação permanente.



29/09/2025

JAMIL CHADE
Artistas e movimentos sociais pedem que Lula proteja flotilha rumo a Gaza

Jamil Chade, UOL, em Genebra, 28/09/2025

Uma ampla coalizão de artistas, personalidades, acadêmicos, políticos e movimentos sociais enviaram, neste domingo, um apelo para que o governo Lula garanta a proteção da Global Sumud Flotilla (GSF), iniciativa internacional que busca romper o bloqueio ilegal a Gaza e levar ajuda humanitária aos palestinos.

O grupo formado por nomes como Chico Buarque, Chico César, rapper GOG, Bela Gil, Mel Lisboa, Aline Borges, o escritor Milton Hatoum e padre Julio Lancelotti pedem ainda que o governo Lula adote sanções contra Israel e que caminhe para uma ruptura das relações diplomáticas.

Também assinam a petição Carol Proner, Vladimir Safatle, Paulo Sérgio Pinheiro, Luis Nassif, Luiza Erundina, Eduardo Suplicy e José Dirceu.


Greta Thunberg usa camiseta em homenagem a Marielle em flotilha de ajuda a Gaza

A GSF reúne aproximadamente 600 integrantes de 44 países em cerca de 50 embarcações, inclusive 15 brasileiros.

14/09/2025

ALEX SHAMS
Nosso homem para Teerã
A campanha apoiada pelos EUA e Israel posiciona Reza Pahlavi, filho do xá, para uma mudança de regime no Irã

 Alex Shams, Boston Review, 6/8/2025

Traduzido por Tlaxcala

Quando Israel lançou um ataque surpresa contra o Irã em 13 de junho, seu objetivo declarado era destruir o programa nuclear do adversário. Mas, em poucos dias, a missão se expandiu. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, admitiu abertamente que a operação poderia levar à derrubada da República Islâmica. No último dia de combates, Donald Trump, que apoiou o ataque desde o início, uniu-se a Netanyahu falando sobre a mudança de regime.



12/07/2025

LYNA AL TABAL
I stand with Francesca Albanese/ Dou meu apoio a Francesca Albanese

Dra. Lyna Al-Tabal,Rai Al Youm, 11-7-2025
Original árabe

Traduzido por Helga Heidrich, Tlaxcala

Lyna Al Tabal é libanesa, doutora em Ciências Políticas, advogada de formação e professora de Relações Internacionais e Direitos Humanos.

 

Sim, decidi dar este título ao artigo em inglês. Não por querer me gabar, nem porque acredite mais na globalização da língua do que na sua equidade. Mas porque esta frase se tornou, sem a permissão de ninguém, uma declaração de solidariedade mundial.

I stand with Francesca Albanese. Dou meu apoio a    Francesca Albanese.

Uma frase curta, mas cheia de significado... apenas cinco palavras. Pronunciadas com calma, mas classificadas como perigosas para a segurança nacional... Como assim?

Há uma mulher italiana que hoje está sendo perseguida por causa de Gaza. Ela não tem genes de resistência, não tem nenhum vínculo familiar com Gaza, nem um passado marcado pela Nakba, nem mesmo uma foto. Ela não é árabe, não nasceu em um acampamento, não foi criada com o discurso da libertação. Ela não é uma sonhadora de esquerda, talvez nunca tenha lido Marx em cafés. Não atirou uma única pedra contra um soldado israelense... Tudo o que fez foi cumprir o seu dever profissional.

“Louca”, declarou Trump. Ele, que monopoliza esse adjetivo e o distribui como fazem os narcisistas quando se esfarelam diante de uma mulher que não se cala diante da injustiça.

Ela se chama Francesca Albanese. Advogada e acadêmica italiana, ocupa o cargo de relatora especial das Nações Unidas para os direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967. Como funcionária internacional, sentada atrás de uma escrivaninha branca, redige relatórios com uma linguagem precisa e uma formulação jurídica imparcial. Não é boa oradora, mas foi clara e inequívoca: o que está acontecendo em Gaza é um genocídio.

Ele escreveu preto no branco em um relatório oficial publicado no âmbito de suas funções, em linguagem compreensível para o direito internacional: o que Israel está fazendo em Gaza é um genocídio.

Da noite para o dia, seu nome se tornou perigoso e deveria ser aniquilado, assim como o exército israelense aniquila as casas em Rafah. Seu nome foi destruído por um único míssil político e foi incluído na lista de sanções, ao lado de traficantes e financiadores do terrorismo.

Agora eu sei: neste mundo, basta não mentir para que te proíbam de viajar, congelem suas contas e te excluam do sistema internacional.

Francesca não infringiu a lei, ela a aplicou. E esse é o seu verdadeiro crime.

Ele não cometeu nenhum erro de definição, não exagerou na linguagem, não extrapolou suas funções. A única coisa que fez foi chamar o crime pelo seu nome.

Não, este relatório não trata do genocídio dos nativos americanos. Nem do Vietnã, nem do fósforo branco, nem de Bagdá, nem de Trípoli... Este relatório não remoi o passado dos Estados Unidos, mas trata de um presente descarado. E do direito que se perde quando o reivindicamos... Este relatório trata da justiça internacional que é afogada diante dos nossos olhos e da carta dos direitos humanos que também se evapora diante dos nossos olhos. Enquanto o culpado ocupa um lugar no Conselho de Segurança.

Este relatório fala de um mundo que não castiga os mentirosos. Um mundo que te mata quando amas sinceramente, quando dás sem pedir nada em troca, quando falas com coragem, quando tentas reparar o mal causado.

Este relatório fala simplesmente do mundo das trevas.

Este mundo que estrangula todos aqueles que não querem ser como ele.

Francesca não foi a primeira.

Quando o Estatuto de Roma foi criado, os EUA trataram o Tribunal Penal Internacional como um “vírus jurídico”, porque não podiam controlá-lo... Bill Clinton assinou-o (sem ratificá-lo). Depois veio George W. Bush, retirou sua assinatura e promulgou a chamada “lei de invasão de Haia”, que autoriza a invasão militar dos Países Baixos se o Tribunal Penal ousar julgar um único soldado ianque... Barack Obama, o sábio, não revogou a lei... Depois veio Trump, o cowboy loiro, com duas pistolas no cinto, que deu o golpe de misericórdia na justiça... Ele puniu Fatou Bensouda, a ex-procuradora-geral do Tribunal, por abrir os processos do Afeganistão e da Palestina. Retirou-lhe o visto, congelou os seus bens e pendurou-a na corda dos seus tweets sarcásticos.

Depois veio Karim Jan, o atual procurador-geral, encarregado do pesado dossiê de Gaza e de uma lista de nomes igualmente pesados: Netanyahu, Galant... Mais uma vez, o facão da vingança política voltou e ameaçou a espada da justiça.

Karim Jan tem sido alvo de inúmeras ameaças vindas do Congresso, da Casa Branca e de Tel Aviv.

 No primeiro dia após sua chegada à Casa Branca, Donald Trump assinou a lei sobre sanções contra o Tribunal Penal Internacional. Um homem de origem paquistanesa que ousa tocar em nomes intocáveis? O jogo acabou.

É assim que uma instituição internacional, com todo o seu pessoal e equipamento, foi alvo de sanções americanas, como se fosse uma milícia armada... Seus funcionários foram proibidos de viajar, de trabalhar e até mesmo de respirar livremente... Quem disse que os EUA impedem a justiça? Desde que ela não se aproxime de Tel Aviv ou do Pentágono.

E, num momento de sinceridade, Joe Biden disse isso com sua formulação rebuscada: essas leis não foram redigidas para se aplicarem ao “homem branco”, mas aos africanos... e a Putin, quando necessário.

E assim se completa o paradoxo: 85% dos processos e julgamentos perante o Tribunal Penal Internacional são contra africanos.

 E quando são abertos processos contra ocidentais, a justiça torna-se uma ameaça... e o Tribunal, um alvo.

E agora você já sabe: se cruzar a linha vermelha,

é o tribunal que é julgado,

o juiz que é julgado,

e a testemunha que é julgada.

Só resta o assassino... sentado na primeira fila, sorrindo para as câmeras, recebendo convites para participar de uma conferência sobre direitos humanos. Por que não?

Trump desferiu um golpe mortal ao direito internacional, uma facada no coração do Tribunal Penal, e depois enterrou o que restava do sistema de direitos humanos e nos jogou o cadáver: “Aqui está, enterrem”, disse ele com o mesmo tom usado para dar ordens durante os massacres na costa síria, quando os alauítas foram enterrados sob os escombros, sem testemunhas, sem investigação, às vezes sem nome, apenas com um número... Um buraco e tudo acabou.

Trump agiu como um cowboy: disparou e depois declarou que o alvo ameaçava a segurança. Tudo isso diante dos olhos das nações. E também diante dos nossos olhos... Diante dos olhos da Europa, mais concretamente.

A Europa que redigiu estas leis a partir das cinzas das suas guerras, dos seus complexos psicológicos nunca resolvidos, do seu medo de si própria.

E hoje, olha, em silêncio... Com todos os seus complexos psicológicos, a Europa hoje guarda silêncio. Enterra seu filho jurídico com sangue frio, como as mães de Gaza enterram seus filhos...

Com uma única lágrima, porque o tempo não permite chorar muito tempo.

Entendem agora? Todas as leis sobre direitos humanos, desde o Estatuto de Roma até a Carta Internacional, são boas para sessões acadêmicas e cursos de formação que terminam com a entrega de diplomas e fotos após a formatura dos felizes especialistas.

E tudo é decidido em Washington.

É assim que se administra a justiça internacional na era da hegemonia: uma lista de sanções... e um tapete vermelho estendido diante do carrasco.

Você acompanhou bem a história?

Uma italiana na lista americana de terrorismo político... Chama-se Francesca Albanese. Não é originária de Gaza, não saiu de uma guerra, não nasceu sob o bloqueio. Não esconde armas nem bombas na bolsa, não pertence a nenhuma organização secreta... Vem do mundo do direito, das instituições das Nações Unidas, de uma burocracia neutra... A única coisa que fez foi redigir um relatório oficial sobre o que aconteceu em Gaza...

Ele escreveu o que viu: sangue, escombros, um crime em todos os sentidos... Escreveu que o que aconteceu ali não foi uma operação de segurança nem de legítima defesa, mas um genocídio... Fez o seu trabalho na linguagem dos relatórios, sem slogans, sem gritos de guerra, sem sequer desenhar uma metade de melancia na margem... Francesca Albanese perturbou a ordem mundial porque não mentiu...

Ele não infringiu as normas diplomáticas... Simplesmente aplicou a lei...

 ➤Assine a petição

Prêmio Nobel da Paz para Francesca Albanese e os médicos de Gaza

08/04/2025

OMRI BOEHM
A Europa e suas vítimas: além do mito da soberania nacional
Um discurso para a Europa, Viena, 7 de maio de 2024

Omri Boehm é um filósofo de origem alemã judaica nascido em Israel e que vive em Nova York. Trabalha na prestigiosa New School of Social Research, que abrigou refugiados alemães antinazistas em sua “Universidade no Exílio”, incluindo Erich Fromm, Leo Strauss e Hannah Arendt. Especialista e discípulo do filósofo iluminista alemão Immanuel Kant, ele deveria fazer um discurso nas comemorações do 80º aniversário dos campos de concentração nazistas de Buchenwald e Mittelbau-Dora, em 6 de abril de 2025, em Weimar. Ele não pôde discursar porque a embaixada israelense em Berlim interveio para proibi-lo de falar, com o argumento de tirar o fôlego de que “ com seu discurso sobre valores universais, Boehm está diluindo a memória do Holocausto”. Os sionistas aparentemente ficaram traumatizados com o “discurso para a Europa” de Omri Boehm há 11 meses, em 7 de maio de 2024, em Viena. Aqui está esse discurso, traduzido por Tlaxcala, editado por Helga Heidrich

Este discurso foi apresentado pelo Instituto de Ciências Humanas (IWM), Viena, e pelas Wiener Festwochen (Semanas do Festival de Viena). Foi proferido na Praça dos Judeus em 7 de maio de 2024. 

 

A Europa aprendeu a necessidade de proteger a dignidade humana como inviolável, refutando o mito da soberania nacional e da cidadania baseada em etnias. Mas também adota esses princípios como formas de emancipação para judeus e nações anteriormente colonizadas. Essa inconsistência coloca em risco tanto a Europa quanto suas vítimas do passado.

Quando fui convidado para fazer esse “Discurso para a Europa” na Judenplatz, tive prazer em aceitar por um motivo muito pessoal, ou seja, pela história de minha própria família. Meu filho e minha esposa tinham acabado de receber a cidadania austríaca, e a receberam porque a família de minha esposa havia escapado da Áustria, ou pelo menos alguns deles escaparam, inclusive a avó de minha esposa, Malita (Miriam) Schertzer. Ela foi expulsa de Viena para a Palestina em 1938, na mesma Aliyah da Juventude com a qual minha própria avó havia escapado da Alemanha.

Para nós, esse “Discurso à Europa” também foi planejado como uma visita particular à cidade de Miriam e à sua escola, o Brigittenauer Gymnasium, hoje Gymnasium am Augarten, onde há um memorial familiar em homenagem aos colegas judeus de Miriam que não escaparam e acabaram sendo deportados para Auschwitz. Os pais de Miriam também foram enviados de Viena para Dachau e Auschwitz, mas sobreviveram e acabaram se reunindo com a filha em Israel. Ainda me lembro de ter conhecido Miriam, tentando impressioná-la com meu alemão e com histórias sobre a Europa para a qual ela nunca voltou. Como ela era tímida, surpresa e feliz, aquela senhora idosa de um pequeno moshav em Israel, que havia começado sua vida como Malita em Viena.

Muito antes de começarem os rumores de uma controvérsia sobre essa palestra, eu sabia que estávamos vindo para cá não apenas com uma compreensão, mas com um conhecimento muito pessoal, por familiaridade, do significado desse lugar - e com um sentimento muito imediato de que memórias pessoais e insuportáveis têm um imenso significado público aqui. Sabemos tão bem quanto qualquer outra pessoa as raízes profundas que esse local, a Judenplatz, tem para esta cidade, para este continente. E também sabemos, como ninguém, que as raízes desse lugar chegam ao nosso próprio país, Israel. É também por isso que me recuso a desonrar esse lugar - não por qualquer coisa que eu diga ou poderia ter dito, e muito menos por reagir a tentativas de transformar uma discussão que deveria ser sobre substância, argumentos e discordância respeitosa em um escândalo artificial. [1]

 É muito significativo ter a estátua de Lessing aqui na Judenplatz diante de mim, olhando para mim, para todos nós e diretamente para o memorial do Holocausto atrás de mim. Lessing, amigo de Mendelssohn, foi o único a estabelecer a conexão essencial entre esclarecimento e amizade. Os amigos democratas-liberais da Judenplatz e os amigos da Europa discutem amigavelmente suas discordâncias, as dúvidas e preocupações que possam ter. A razão anda de mãos dadas com a amizade; o populismo e o nacionalismo - com lançar ovos e com gritos. Não se engane: os ovos servem para humilhar e, por essa razão, são perigosos. Escolher a primeira, a razão, em vez da segunda é deixar o clamor de lado, estender a mão àqueles que criticaram esse discurso e tentaram atrapalhar em vez de protestar contra ele, e seguir em frente.

'Você é mais do que seus mitos'

Quando, em 2019, Timothy Snyder inaugurou o “Discurso para a Europa” na Judenplatz, ele cunhou esta mensagem como seu lema. “Você é mais do que seus mitos”.

Quero unir-me a essa mensagem, mas perguntar novamente o que significa para a Europa ser mais do que seu mito?

Uma maneira de pensar sobre isso é dizer que a Europa deve confrontar o mito com a história. Essa foi a sugestão de Snyder; ele afirmou que, para que a Europa cumpra seu papel de símbolo de esperança - e ela é um símbolo de esperança -, os europeus devem escolher a história como o oposto do mito. Há duas maneiras de se lembrar, argumentou Snyder: uma é por meio dos mitos que “nos levam de volta à história de como sempre estivemos certos” - e é por isso que os mitos são sempre nacionais, para não dizer nacionalistas. Outra forma de lembrar é a história, que permite que você “pegue o que lembra, acrescente-o a outras perspectivas críticas e reconheça sua responsabilidade” como um império em ruínas.

Concordo com Snyder que a Europa deve ser mais do que seus mitos; concordo também que a história é importante, até mesmo necessária. Mas acrescento que isso não é suficiente. Para ser mais do que seus mitos, a Europa terá de insistir na realidade dos ideais. Pois, de fato, a história não é o oposto dos mitos. A razão é - se ela puder levar a sério a autoridade de seus próprios ideais. E a autoridade da história, também do tipo que nos faz reconhecer nossa responsabilidade pelo passado, às vezes pode servir para minar nossos ideais.

Eis outra maneira de colocar a questão: a história deve ser respeitada por causa de nosso compromisso com os ideais. Mas se os próprios ideais são respeitados por causa de nosso compromisso com a história, então esse compromisso ameaça transformar nossos ideais em mitos - mitos nacionais. Essa ameaça agora confronta a Europa. Ela confronta a política europeia e confronta a vida intelectual europeia, pois a direita populista está em ascensão, abusando da responsabilidade histórica. Esse desafio deve ser enfrentado agora. Não negando a autoridade da história, mas protegendo-a - protegendo-a ao insistir na realidade dos ideais.

É sobre isso que vou falar, mas terei de começar pelo início.

Quando os Estados Unidos romperam seus laços com a Europa e afirmaram sua independência da soberania europeia, fizeram isso invocando a autoridade da verdade, não da história: 'Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que foram dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade'.

Podemos nos apoiar na autoridade dessas verdades evidentes, afirmadas pela Declaração de Independência Americana, hoje? Parece-me que muitas pessoas, desde os chamados críticos pós-coloniais até os teóricos liberais centristas, de fato tendem a rejeitar essa proposição.

Em um extremo do espectro, as pessoas reclamam que os pais fundadores eram, eles próprios, escravagistas. Que a afirmação “todos os homens são criados iguais” significa literalmente homens, e exclusivamente homens brancos. Ou seja, que o universalismo do Iluminismo expresso nessa famosa frase é, na melhor das hipóteses, uma máscara que permite que os homens europeus discriminem, ao mesmo tempo em que se congratulam por se apegarem aos ideais universalistas. Na pior das hipóteses, esses ideais são, de fato, a ideologia que leva os europeus a discriminar, exterminar e escravizar.

O argumento é o seguinte: a tradição cosmopolita, que faz do homem, ou da humanidade, a medida de todas as coisas - a origem do valor - é indistinguível da tradição que faz do homem “o mestre e possuidor da natureza”. E, sendo assim, a tradição cosmopolita, que começa com a teoria da dignidade da humanidade, acaba, na prática, como a história que transformou os europeus em colonizadores de continentes, abusadores da natureza (agora causando a morte da natureza) e proprietários de outros seres humanos como escravos. A Declaração de Independência não afirma uma verdade evidente, mas um mito, pois é a história que nos vende a ilusão nacional de que “sempre tivemos razão”.

Na outra ponta do espectro, entre os pensadores liberais do centro político, as pessoas muitas vezes fingem balançar a cabeça diante da negação do universalismo do Iluminismo europeu. Mas, na verdade, o pensamento liberal do pós-guerra consiste em uma negação muito semelhante. Quando John Rawls, o pai do liberalismo americano, diz que a justiça é “política, não metafísica”, ele quer dizer exatamente isso: verdades evidentes como as afirmadas na Declaração de Independência não podem ter autoridade nas sociedades democráticas modernas.

“A verdade sobre uma ordem metafísica e moral independente”, argumenta Rawls, não pode ‘fornecer a base para uma concepção política de justiça em uma sociedade democrática’. Essa é uma rejeição dramática da Declaração de Independência: suas verdades evidentes precisam ser tratadas como religião: toleradas, respeitadas como a fé privada das pessoas, mas não reconhecidas como o fundamento da lei. Portanto, não é apenas a esquerda pós-colonial ou identitária que rejeita o ideal universalista do Iluminismo europeu; de fato, há um amplo consenso sobre essa rejeição entre a esquerda e o centro liberal. O fato de ele ser rejeitado pela crescente direita populista identitária não requer muitos argumentos.

Fui deliberadamente às questões importadas da América de 1776 porque é mais fácil fingir que elas estão distantes. Mas agora eu gostaria de trazê-las de volta ao coração da realidade europeia contemporânea. Enquanto os americanos nunca deram às verdades evidentes afirmadas na Declaração de Independência qualquer significado legal - nunca as integraram à constituição - a Europa do pós-guerra deu esse passo, e o fez com esta declaração: “A dignidade humana é inviolável”.

Essa é, obviamente, a frase de abertura da Lei Básica (Grundgesetz, Constituição) da Alemanha, mas é mais do que isso. Exatamente a mesma frase é também o primeiro artigo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. E o ideal da dignidade humana também é a âncora da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, o modelo para várias constituições europeias do pós-guerra. (Mas não a austríaca! Não para Hans Kelsen. Mas, se você me perguntar, nunca é tarde demais). A afirmação de que a dignidade humana é “inviolável”, como a origem do direito, postula um ideal de universalismo iluminista que, para nossos propósitos, é idêntico às verdades evidentes da Declaração de Independência. Ele afirma que a dignidade humana é inalienável e que a autoridade da lei é relativa a ela. Isso coloca a tradição universalista ou cosmopolita muito mais próxima de uma democracia radical e abolicionista do que é comumente reconhecido, mas deixarei esse fato de lado e, em vez disso, farei duas perguntas:

Primeiro, esse princípio, que expressa o ideal do universalismo iluminista, é de fato uma expressão do racismo e do colonialismo da Europa? Devemos defender e reencenar o ideal da dignidade humana como resposta aos crimes monumentais cometidos pela Europa no passado durante o período do Império - desde os crimes do Holocausto até os do colonialismo? Ou esse humanismo é, de fato, a causa desses crimes? A Grundgesetz alemã, assim como a Carta Europeia de Direitos Fundamentais e a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, deve ser “descolonizada”?

Em segundo lugar, se de fato defendemos o princípio, será que os pensadores liberais europeus o defendem genuinamente - e com genuinamente quero dizer: mesmo quando esse princípio desafia seus interesses, sua identidade, seus compromissos mais íntimos? Ou será que o desejo de fundamentar nosso compromisso com a dignidade humana na responsabilidade histórica também marca os limites desse ideal, ameaçando, assim, transformá-lo em um mito?

Quero tratar dessa questão com calma.

Consideremos esta frase outra vez: A dignidade humana é inviolável. À primeira vista, ela parece menos um mito do que uma falsidade direta. A dignidade humana é violável e está sendo violada neste exato momento. Mas se não for uma proposição falsa, o que pode fazer com que pareça uma é também o que a torna tão poética, até mesmo profética. Uma das grandes inovações dos profetas hebreus bíblicos foi estilística (parece que estou me desviando, mas não estou): eles costumavam declarar o contrafactual, até mesmo o impossível, como sendo realmente verdadeiro.

Essa inovação estilística tinha tudo a ver com sua descoberta humanística. Uma proposição que afirma descritivamente algo que, na melhor das hipóteses, parece prescritivo (“a dignidade humana é inviolável”), não como um imperativo, mas como uma verdade, é estritamente falsa ou está tentando descrever uma realidade superior. Quando se entende isso, entende-se algo muito profundo nos profetas hebreus, em Platão e em Kant, que dá à frase lacônica “A dignidade humana é inviolável” a estética do sublime. O ser que é capaz de fazer essa declaração - e experimentar o sentimento que seu gesto poético cria - tem dignidade e impõe respeito.

Você pode pensar que o que às vezes chamamos de realidade - aquela em que compramos leite no supermercado, em que famílias judias são massacradas e queimadas na fronteira de Gaza, em que toda uma população palestina está passando fome e sendo bombardeada - essa realidade torna esse ideal um mito e sua poética um kitsch populista. A decisão sobre qual é o ideal depende de nós.

Agora podemos nos perguntar: se o ideal da dignidade humana é válido, o que o torna válido? Não abordarei essa questão aqui, mas, em vez disso, perguntarei o que não pode torná-lo válido. Se a ideia de que a dignidade humana é inviolável está fundamentada na decisão dos europeus, alemães, italianos e austríacos de viver de acordo com esse princípio, então isso explica precisamente por que a dignidade humana é de fato violável. Uma reivindicação incondicional não pode depender da decisão de ninguém: é muito bom que, digamos, o povo alemão tenha decidido tratar a dignidade humana como inviolável, mas sabemos que eles também podem decidir o contrário.

Essa constatação nos leva a um ponto importante: o fato de que o princípio da dignidade humana inviolável não pode depender da soberania nacional, da decisão ou da vontade de um povo. Pelo contrário: a dignidade humana marca o limite da soberania nacional. Esse ponto é importante porque mostra a continuidade entre o discurso abstrato da dignidade e duas tendências européias muito concretas.

A primeira delas é que os Estados autolimitem sua soberania por meio de suas próprias prerrogativas - entrando em constelações federativas, por exemplo, ou submetendo-se ao direito internacional ou a tribunais internacionais e europeus. Em consonância com seu reconhecimento da dignidade humana, a Europa passou do direito nacional para o internacional e para o cosmopolita, ou seja, de uma forma de direito baseada na soberania nacional última dos Estados para uma forma de direito que a respeita e a questiona.

A segunda tendência é para o patriotismo constitucional, com o qual me refiro aqui a uma ideia muito ampla: o reconhecimento de que pertencer a uma nação soberana não requer nem o sangue certo nem a língua, a história ou a cultura certas: você pertence ao povo alemão, austríaco ou italiano em virtude de ter cidadania alemã, austríaca ou italiana.

Quando, em 2019, Timothy Snyder esteve aqui e conclamou a Europa a ser mais do que seus mitos, ele advertiu os europeus de que “seus pequenos e implausíveis mitos nacionais” permitiam que vocês “não vissem” o que era tão singular na Europa, ou seja, “que a União Europeia é a única resposta bem-sucedida à pergunta mais importante da história do mundo moderno”. Essa pergunta é: “O que fazer depois do império? O que fazer com o império?

Segundo Snyder, há duas respostas ruins: criar estados-nação ou ter mais império. A União Europeia é a única resposta nova, frutífera e produtiva para essa pergunta. Repito isso, porque respeitar a dignidade humana por meio do controle da soberania nacional e substituir a nação por um forte conceito de cidadania são os dois ingredientes essenciais e inovadores da resposta da Europa a essa questão monumental.

Essa resposta substituiu o apego hobbesiano-schmitteano a um Leviatã soberano como resposta à “guerra de todos contra todos” e afirmou que a dignidade, e não o medo, deve ser o fundamento da política humana. Para proteger a dignidade por meio do Estado de Direito, a soberania precisa ser questionada, criticada e até mesmo desconstruída - e não afirmada por meio de Leviatãs nacionais soberanos. Quando Hobbes falou do Leviatã, aquele símbolo de um poderoso monstro mítico, ele sabia por quê: porque a soberania exige a idolatria do mito. A herança mais importante do pensamento judaico neste continente, o monoteísmo ético, sempre esteve ligado à crítica do mito e de sua idolatria: vale a pena lembrar essa tradição que vivia na Europa antes da guerra, antes do desmoronamento de seu império, e que trabalhou contra o mito da soberania em Hermann Cohen, Ernst Cassirer, Martin Buber e Hannah Arendt.

Mas observe: enquanto aqui se encontra a expressão essencial da resposta bem-sucedida da Europa ao seu passado - a “questão mais importante do mundo moderno” -, ou seja, a substituição dos Leviatãs míticos nacionais, os pensadores europeus, na verdade, adotaram exatamente o oposto desses princípios na medida em que a Europa estava olhando para fora: para as vítimas de seu império.

Se o império europeu em ruínas acabou aprendendo a questionar a soberania, a ideia também era que, para as nações colonizadas, a soberania era o veículo da libertação. Da mesma forma, após o Holocausto e o extermínio sistemático dos judeus europeus, a ideia era que os judeus precisavam se defender e restaurar sua dignidade, como nação, por meio da soberania nacional - por meio da criação de um Estado judeu.

E devemos ser claros: nesse momento da história, eles não estavam errados.

Quando aplicada às vítimas da Europa, a resposta da Europa pode parecer a bagagem intelectual do império ou os restos de uma ideologia colonialista que pede para continuar se impondo mesmo após o fim do império. A resposta bem-sucedida da Europa ao passado do império se aplica às vítimas do passado do império?

E aqui está outra pergunta: a resposta da Europa ao seu passado pode sobreviver se contradizermos essa resposta no que diz respeito às suas vítimas? Se reconhecermos que os outros têm o direito de violar a dignidade humana, também reconheceremos nosso dever de respeitar o direito deles de fazer isso. A dignidade humana é, então, importante para nós, mas não inviolável. Esse é o ponto crucial; uma vez que você reconhece isso, externamente, você também reconhece algo internamente - você simplesmente não pode reivindicar a dignidade humana como inviolável dentro do continente também. Para oferecer uma variação do argumento de Snyder: essa é a pergunta mais importante sobre a resposta dada à pergunta mais importante da história moderna.

Para os pensadores pós-coloniais, limitar as nações libertadas por meio da ideia cosmopolita de humanidade parece uma forma de neocolonialismo: impor as respostas da Europa às suas vítimas, impedindo sua emancipação. Quando se trata do Holocausto, a objeção é exatamente a mesma. Experimente sugerir que uma constituição israelense deveria começar não com a soberania do povo judeu, mas com um compromisso com a dignidade humana: você será acusado de antissemitismo por sugerir o uso de ideais cosmopolitas europeus para questionar a soberania judaica e o estado democrático e judeu - convidando a acusações de antissemitismo.

Para um lado, portanto, a política universalista parece racismo ou colonialismo; para o outro, parece antissemitismo. E como todos os lados aqui veem a soberania como a condição de soma zero de sua própria existência, essas doutrinas agora não estão apenas em conflito, mas em rota de colisão: não é porque os lados são tão diferentes um do outro que a situação é tão violenta e o debate tão acalorado, mas porque são tão semelhantes.

Para muitos da esquerda, certamente da esquerda pós-colonial, o povo palestino é a personificação definitiva da luta contra o colonialismo europeu. Quem quer que questione seu direito à resistência armada, por exemplo, ao condenar o ataque do Hamas a civis, “relativiza” ou “contextualiza” o colonialismo. Que direito os europeus têm, segundo o argumento, de criticar o uso da força por aqueles que não são protegidos por lei?

Por outro lado, na Alemanha, mas não apenas na Alemanha, vemos a mesma ideia, embora oposta: que os judeus, representados pelo Estado de Israel, personificam o sofrimento humano e o direito à autodefesa. Quem quer que exija que o país assine uma constituição liberal-democrática neutra - afirmando um Estado para todos os cidadãos - e seja responsável perante a lei internacional, de fato relativiza o direito dos judeus à autodefesa. Enquanto a resposta da Europa ao seu império em ruínas foi desconstruir a soberania afirmando a dignidade como seu limite, a resposta de suas vítimas foi afirmar a soberania nacional como inviolável. Cada lado finge encarnar algo definitivo, absoluto, que relativiza a dignidade humana daqueles que pertencem ao outro grupo.

Isso ficou claro nas respostas dos círculos intelectuais de esquerda ao massacre sistemático e sádico de famílias inteiras, estupros e queimadas pelo Hamas. Não há como ignorar isso: a tendência nos campi universitários variava da alegria com esse ato à tolerância - ou, pelo menos, à insistência de que os palestinos tinham o direito de “resistência armada” em relação a seus “colonizadores”. Se você argumentasse que isso estava, na melhor das hipóteses, desculpando o antissemitismo genocida e, na pior, apoiando-o, a resposta comum era que o Hamas não é uma organização antissemita, porque o ataque tinha como alvo os israelenses, e não os judeus como tais. Mas a carta do Hamas de 1988 afirma claramente: “O Dia do Juízo não acontecerá até que os muçulmanos matem os judeus, e quando o judeu se esconder atrás de pedras e árvores, as pedras e árvores dirão: 'Ó muçulmanos, há um judeu atrás de mim, venham e matem-no'.

Costumava haver uma tendência a ignorar essa cláusula ou afirmar que o Hamas havia desistido dela. Mas é muito plausível que essa frase exata sobre o Dia do Juízo Final estivesse presente na mente daqueles que realizaram o massacre. Em 7 de outubro, muitos deles pareciam ter pensado exatamente isso: que o Dia do Juízo Final havia chegado. A tolerância a isso é generalizada, e é importante dizer que essa tolerância decorre exatamente da ideia da soberania do colonizado. As mesmas pessoas - estudantes, professores - que desculparam o massacre agora cantam “do rio ao mar, a Palestina será livre”. Não se engane: eles não querem dizer “democrática para todos”, mas “livre dos judeus” - ou, para ser mais preciso, eles suspendem o julgamento para evitar a suposição supostamente neocolonialista de que têm o direito de decidir pelos palestinos.

A soberania nacional é tratada como o veículo inviolável da libertação. Como disse Yanis Varoufakis: “Perguntaram-me se eu condenava o Hamas e eu disse que não. Mas eu condeno toda violência contra civis. Também não condeno os colonos israelenses. Também não condeno Benjamin Netanyahu. Eu condeno a nós, europeus”. Se você me perguntar, essa não é uma maneira de assumir a responsabilidade histórica como europeu, mas de se esconder atrás dela e ridicularizá-la.

O outro extremo do espectro opera exatamente com a mesma lógica. Isso é mais visível na falsa tendência de um certo centro liberal europeu de tratar o Holocausto como um significante “universal”. Como disse um autor, a comemoração do Holocausto tornou-se uma memória “universal” ou “cosmopolita”. Nessa visão, o evento é um símbolo, não de um horror específico do passado, mas de qualquer violação sistemática dos direitos humanos. Da mesma forma, o Holocausto não é mais propriedade exclusiva dos grupos nacionais diretamente envolvidos no evento histórico - judeus, por um lado, alemães e europeus de forma mais ampla, por outro; em vez disso, a comemoração do Holocausto desempenha um papel crucial no reforço do direito internacional e dos direitos humanos, tornando-se “um símbolo potencial de solidariedade global”.

À primeira vista, isso pode parecer uma tese amigável sobre a memória ou a história como um apelo a compromissos universais. Em uma inspeção mais minuciosa, deve ficar claro que ela deu ao universalismo um nome ruim, apresentando o universalismo ou a memória como um projeto colonial. A forma como o Holocausto é comemorado está a serviço de projetos nacionais específicos. Esse símbolo “universal”, portanto, exclui da “solidariedade global” aqueles para quem esse símbolo é tudo menos acessível. Como a comemoração do Holocausto tem sido interpretada como argumento para a soberania nacional dos judeus, ela não promove os direitos humanos internacionais, especialmente para aqueles cujos direitos humanos podem parecer um obstáculo.

Um dos exemplos mais significativos dessa tendência é a atitude do governo alemão em relação ao Tribunal Penal Internacional de Haia (ICC). A instituição do direito internacional e dos tribunais internacionais autorizados a julgar crimes de guerra desenvolveu-se no contexto imediato dos crimes nazistas. Esse é um forte motivo para que a Alemanha, assumindo sua responsabilidade histórica, seja um dos principais patrocinadores do TPI. No passado, o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha fez de tudo para defender o TPI contra a interferência do governo Trump, declarando que “qualquer tentativa de minar a independência do tribunal não deve ser tolerada”.

Mas quando o promotor em Haia iniciou uma investigação inicial sobre crimes de guerra supostamente cometidos por Israel nos Territórios Ocupados, a Alemanha argumentou que o tribunal não tinha jurisdição. Israel, argumentou, não faz parte do Estatuto de Roma, que regulamenta o mandato do tribunal, e a Palestina não é reconhecida como um Estado. Quando os juízes do TPI rejeitaram essa opinião - e por um bom motivo: A Palestina, segundo eles, foi reconhecida como um “Estado Parceiro” do Estatuto de Roma, independentemente de ser ou não um Estado, o que significa que o tribunal tem jurisdição - um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha declarou que “nossa posição nesse caso permanece inalterada. De acordo com nossa posição legal, o Tribunal Penal Internacional e seu Gabinete do Procurador não têm jurisdição”. O Ministro das Relações Exteriores da Alemanha repetiu a mesma declaração.

Para entender a gravidade dessas declarações, é necessário deixar de lado a questão da jurisdição do tribunal. Trata-se da autoridade do tribunal, que reconhecer significa considerar a decisão do tribunal como suficiente para mudar a posição legal da Alemanha - limitando assim sua soberania. A alegação do governo alemão de que a Corte não tinha jurisdição nos territórios palestinos, apesar da decisão dos juízes de que ela tem, negou não apenas a jurisdição da Corte. Ela também negou sua autonomia e autoridade.

Esse é um bom exemplo da poderosa influência da doutrina conhecida, embora não oficial, da Staatsräson (razão de Estado) - que só pode ser não oficial, pois, se não fosse, entraria em conflito com a constituição. É assim que parece quando o compromisso com a resposta da Europa ao seu passado, se fundamentado na história, encontra seu limite e se torna não apenas não universal, mas antiuniversal. Com seu discurso sobre a Staatsräson, a Alemanha afirma sua própria soberania para se opor à autonomia do tribunal, a fim de proteger a soberania judaica da autoridade do tribunal. Como a Alemanha é a principal patrocinadora da Corte, isso constitui uma séria ameaça a essa instituição.

Isso foi há quatro anos. Agora podemos ver os efeitos desse questionamento do poder da lei internacional. Será que o TPI tem autoridade no território, já que Gaza está arrasada e faminta, e os ministros israelenses falam em entrar em Rafah, já que “não faremos metade do trabalho, mas exigiremos aniquilação total”? Se quiserem saber, é uma pena que Varoufakis, como europeu, não condene tal declaração.

Esta, então, é a questão: A Europa deve pensar na resposta que deu à questão mais importante da história moderna apenas como sua própria resposta? Como uma resposta que pode ser boa aqui, mas que em outros lugares não é apenas errada, mas também ilegítima? Ou isso já é trair a resposta da Europa - escrevendo a primeira frase na história da decadência dessa resposta, também dentro da Europa, e entregando o argumento aos inimigos da Europa?

Considere a oposição a esse discurso, aqui na Judenplatz. É ilegítima a ideia de que salvar Israel e a Palestina de uma distopia ainda pior exige que imaginemos uma transição da região na direção de uma constelação europeia, seguindo os mesmos padrões daquela grande resposta europeia, com nações sub-soberanas se unindo a uma constituição comum (con)federativa para toda a região? Essa ideia federativa, que exige levar a sério a advertência de Immanuel Kant de que as negociações e os acordos de paz não devem se tornar mentiras - mentiras que levam a guerras de soma zero que minam a própria possibilidade de paz -, é ilegítima?

Se a resposta europeia for deslegitimada dessa forma, como isso se reflete na Europa? Como a permissão da lógica desumanizadora da guerra total em Israel e na Palestina afeta os próprios cidadãos judeus e muçulmanos da Europa? Será que isso não entrega o argumento à direita nacionalista populista, que está em ascensão ao nosso redor, afirmando a soberania nacional, questionando o direito internacional e reivindicando uma cidadania baseada na afiliação étnica?

Este, portanto, seria meu apelo à Europa: insista na realidade de seus ideais. Eles são ainda mais importantes devido à responsabilidade histórica, mas, em última análise, como ideais cosmopolitas, não podem ser entendidos como dependentes ou limitados pela responsabilidade histórica. Neste momento sombrio e difícil em que a política e o pensamento chegaram, devemos rejeitar a tendência de todos os lados de minar os ideais da Europa por meio de uma maneira muito irresponsável de entender a responsabilidade histórica. Essa é a única maneira de manter os compromissos históricos da Europa e de evitar que esses compromissos se tornem formas nacionais de pensamento mítico.

Notas

1 - A Israelitische Kultusgemeinde (Comunidade Judaica) de Viena fez campanha para que o discurso de Omri Boehm fosse cancelado. O ex-líder da Kultusgemeinde e presidente interino do Congresso Judaico Europeu, Ariel Muzicant, afirmou que, se fosse “30 anos mais jovem”, teria ido à palestra para “jogar ovos em Boehm”. Isso poderia ter sido interpretado como um convite para que outros agissem. Mesmo assim, a palestra foi realizada sob proteção policial e apesar da interrupção dos manifestantes - Ed.

2  - Nesse momento, um manifestante com cartaz de protesto gritou: “A Lei Básica de Israel tem o princípio da dignidade humana consagrado nela!” Fiquei muito feliz ao ouvir isso, principalmente porque provou que alguns dos manifestantes, ou pelo menos um, estavam ouvindo. Não pude interromper a palestra para responder. De fato, a Lei Básica de Israel prova o ponto, pois ela subordina explicitamente a dignidade humana à defesa do Estado - impedindo, assim, a interpretação da lei como exigindo que o Estado seja “o Estado de todos os seus cidadãos”. Pelas mesmas razões, a lei também se abstém de nomear a igualdade como necessária para a dignidade. Imagine uma constituição israelense que começasse com a dignidade humana, em vez de submetê-la à soberania judaica!


 Manifestantes contra o universalismo, considerado antissemita, na Praça dos Judeus, durante o discurso. Fotos Gabi Hift