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14/04/2023

FAUSTO GIUDICE
50 anos depois, Malika, morta aos 8 anos por um gendarme francês, renasce em um livro como um soco no estômago

Fausto Giudice, 11 de abril de 2023
Revisado por Helga Heidrich e Florence Carboni

Fausto Giudice (Roma, 1949) é um autor, tradutor e editor italiano que vive na Tunísia desde 2011. Em 2005 ele cofundou a rede de tradutores Tlaxcala, e em 2012 a editora workshop19, que se tornou em 2017 The Glocal Workshop/A Oficina Glocal. Ele é autor de dois livros de investigação publicados, tradutor de uma dúzia de outros, e de alguns manuscritos inéditos.

I.          Prelúdio

Sejamos francos: minha geração, a dos babyboomers do 1968, tem uma tendência geral de olhar com condescendência a geração d@s milenári@s, a de seus net@s. Ou pelo menos é assim que eles muitas vezes percebem nossas atitudes de veteranos.

Eu mesmo nunca julgo ninguém, e isso me custou muito caro no final. A traição e a calúnia são o lote comum dos humanos assim que formam uma sociedade. E entendo perfeitamente bem aqueles de meus jovens amigos que escolhem o caminho de um eremitério destecnologizado nas montanhas. Comecei a pensar nisso e a sonhar em criar comunidades rurais onde qualquer objeto eletrônico ou até mesmo elétrico seria deixado sob guarda na entrada.

Enquanto isso, eu passo, para meu crescente desespero, muito do tempo que me resta para viver diante de minhas telas e de meus teclados. Vinte e cinco anos atrás, minhas entranhas se revoltaram contra isso e começaram a sangrar. Consegui sobreviver, por um milagre inexplicável. O cirurgião que me operou pela segunda vez me disse que quando eu estava sobre a mesa e minha pressão arterial havia caído a zero, ele falara à equipe: “Vou comer um lanche, acho que quando voltar, ele terá passado”. E qual não foi sua surpresa quando ele voltou da cantina ao descobrir que o gringo polentero ainda estava respirando. Ele me explicou a hipótese médica de que minha hemorragia digestiva era síndrome de Mallory-Weiss. Isso foi uma grande ajuda para mim! Eu lhe disse que, na minha opinião, eu havia sido vítima da síndrome da revolução virtual no macintosh. O golpe que me deu o fim tinha sido um projeto totalmente desastroso de um bando de idiotas de Marselha, Avignon e arredores para fazer uma “caravana para a Palestina”. Descobri rapidamente que eles não só eram de uma ignorancia abismal, mas - e isto geralmente anda de mãos dadas - horrivelmente pretensiosos. Em suma, nenhuma caravana, nem para a Palestina, nem para qualquer outro lugar, exceto o hospital.

De volta há 12 anos no país onde cresci, sem televisão, sem computador (não existia), sem telefone celular (a linha fixa dos meus pais, que estava no meu quarto, quase nunca tocou), tive um choque, uma enxurrada de choques: na Medina, ruas inteiras de artesãos haviam desaparecido, na Rua Malta Sghira, todos os artesãos de ferro batido haviam sido substituídos por comerciantes de móveis mal feitos em madeira barata (as espreguiçadeiras que comprei não duraram um ano) e plástico, e no mercado central, os belos tomates vermelhos haviam dado lugar a tomates laranja sem sabor, de sementes híbridas feitas na UE, e destinados à UE. E oito dos doze milhões de habitantes do país tinham uma conta na fèsebuc. Como as assinaturas telefônicas são frequentemente associadas a uma conta no fèsbuc, muitos usuários (ou usados?) só conhecem a internet como fèsbuc, wadzapp, youtube, telegrama ou, agora, tiktok. E é o mesmo em todo lugar, de Medellín a Nablus, de Soweto a Jebel Lahmar [a favela mais antiga de Tunis].

Durante as campanhas eleitorais às quais assisti em meu “país de retorno”, não vi um único cartaz colado em um muro. Nenhuma das centenas de pessoas com menos de 45 anos que conheci nestes 12 anos jamais escreveu e preparou um panfleto, a ser distribuído às cinco da manhã na porta de alguma usina, ou às oito na porta de um colégio, ou ao meio-dia em algum mercado, ou às 18h na saída de uma loja de departamento.Ou seja, resumindo, passamos do collé-serré [pegado-apertado, uma maneira “suja” de bailar] de minha juventude para o copié-collé-posté-liké-buzzé [copiado-colado-postado-curtido-zumbado] de hoje. E as três dúzias de bastardos que estão tentando governar nosso planeta implodido estão trabalhando intensamente (ou melhor, fazendo seus escravos haiteque trabalharem duro) para garantir que não precisem mais de nós, ou seja tentando nos exterminarao mesmo tempo que preparam sua fuga, para a lua ou para o Marte ou para outro lugar. Há alguns anos atrás, um vigarista genial conseguiu vender títulos para terrenos na lua a israelenses que sentiram que o projeto sionista estava definitivamente falhando e e não tinham mais escolha: era preciso colonizar a lua. Lá, pelo menos, eles tinham certeza de que estariam em território garantido araberrein [limpo de árabes].

 II. Malika e Malika

Em 5 de junho de 2021, recebi uma notificação de Yezid Malika Jennifer:

Boa noite, senhor. Obrigada pela homenagem à minha tia Malika Yezid, morta em 1973 por gendarmes [emoji] boa noite”.

Em 7 de junho, segunda mensagem:


A pequena lá embaixo era Malika. Li seu livro e quando vi o nome Yezid, que também é meu nome, ele tocou meu coração. Porque esta história destruiu minha família. Minha avó me contou esta história. Todos estes abusos [policiais], estas famílias destroçadas, é horrível.  Todos estes nomes destas vítimas: nunca devemos esquecer. Tenha um bom dia”.  

Eis, a seguir, aquilo a que ela estava se referindo:

“No domingo 24 de junho, gendarmes em Fresnes à procura de um menino argelino de 14 anos que lhes tinha escapado, atacaram sua irmãzinha. Malika Yazid estava brincando no pátio do bairro provisório dos Groux, onde ela morava, em Fresnes. Ela foi até o apartamento para avisar seu irmão. Os gendarmes invadiram o apartamento.
Um deles, após ter dado um tapa em Malika, trancou-se em uma sala com ela para um “interrogatório”. Um quarto de hora depois, Malika deixou a sala e desmaiou no chão. Ela morreu quatro dias depois no hospital Salpétrière sem ter saído do coma.”

Estas são as onze linhas que dediquei à pequena Malika, esbofeteada até a morte por um gendarme aos oito anos de idade, naquele terrível verão de 1973, a seqüência mais dura das duas décadas de Arabicídios que reconstruí em meu livro com esse nome e publicado em 1992. Este livro tinha sido uma escolha óbvia, feita durante a obra sobre o anterior, Têtes de Turcs en France [Cabeças de turcos na França], publicada em 1989, que tinha tido bastante sucesso (mais de 25.000 exemplares vendidos, naquela época ainda foram lidos livros impressos em papel). Era dolorosamente óbvio que era impossível dedicar um único capítulo da Têtes de Turcs (do qual cada capitulo descrevia um exemplo de apartheid à francesa: trabalho, saúde, escola, moradia, etc.) ao que, naquele então, era chamado de “crimes racistas” pois haviam sido demasiadamente numerosos. Decidi portanto dedicar uma outra obra a esse tema. Durante dois anos, a sala da minha espelunca em Ménilmontant estava atravessada por uma prancha comprida colocada sobre duas cadeiras, na qual acumulavam-se as pastas amarelhas, por casos e por anos. Em suma, um prelúdio material (madeira, tinta, papel) dos quadros Excel do futuro próximo.

No final, eu tinha 350 desses casos em 21 anos, isto é 16,6 por ano, 1,3 por mês. Uma ninharia em comparada com os Negricídios nos EUA. Mas por favor, não estamos na ianquelândia, estamos no berço dos Direitos Humanos e do Cidadão, todos os homens nascem livres e iguais em direitos etc. etc., que acabamos de celebrar com grande pompa nos Champs-Élysées com o desfile de Jean-Paul Goude para o Bicentenário da Grande Revolução! Admito que durante estes dois anos de intenso trabalho de investigação, fui mais de uma vez ameaçado pela depressão e por um desejo de fuga, talvez não para a lua, mas em todo caso longe de Madame la France, como diziam os magrebinos (em referência à nota de 100 francos com a efígie da Liberdade com a mama nua que guia o povo).

Os momentos mais penosos foram os processos, onde pobres famílias árabes sofriam uma segunda morte, infligida pela frente dos enfarinhados: juízes, procuradores, advogados de defesa e réus la mano en la mano, e jurados - quando estavam em tribunal criminal de Júri - totalmente estupefatos e mudos. Eu nunca ouvi um único jurado dizer uma palavra durante um julgamento de três dias. Isso faz você se perguntar para que servem esses jurados “populares”?   

A família de Malika não precisou passar por isso: o caso foi rapidamente enterrado como de costume. Mas nada mais foi poupado. Jennifer Malika Fatima é uma das duas únicas sobreviventes da família, dizimada pela hogra (desprezo), a droga, a delinquência e, por trás de tudo isso, o chamado “transit”. O bairro de “transit” de Les Groux, em Fresnes, a um passo da prisão (“prático”, diz seu tio Nacer, o único outro sobrevivente, que teve um gostinho dela), uma situação temporária que durou para sempre. Abandonada ao seu destino com sua avó após o suicídio de sua mãe, ela foi colocada em uma família de acolhimento gaulesa pura aos 18 meses. Ela ficou lá por trinta anos e finalmente escapou a seu destino após ter escapado todos os perigos habituais que esperam as crianças das classes perigosas racializadas.

E agora, eis que, no dia 7 de abril, o SEU LIVRO saiu! Um verdadeiro evento! Eu não quero estragá-lo, mas apenas dizer o seguinte: este livro é a melhor realização que conheçi até hoje do desejo que tinha formulado para mim mesmo quando meu próprio livro Arabicides foi publicado. Eu não estava satisfeito com o resultado final do meu trabalho, sonhava com o livro A Sangue Frio de Truman Capote, que havia visitado e conversado com dois jovens assassinos no corredor da morte durante anos e dessa relação havia produzido uma obra-prima. E eu gostaria de ter “cozinhado” alguns arábicidas e seus parentes, mas não consegui encontrar nenhum. Mas eu não era Truman Capote, La Découverte não era uma grande casa nova-iorquina que pudesse pagar detetives, eu era apenas um obscuro jornalista italiano “islamo-esquerdista” antes da invenção deste termo (“Ah! Você fala muito bem francês” – “Você o diz, cara de pau, o francês é nosso espólio de guerra”), editado por uma editora com um passado glorioso (François Maspero) mas um presente crítico (foi mais tarde comprada por uma multinacional), em suma, eu disse a mim mesmo que meu trabalho era um serviço mínimo a prestar às gerações futuras que iriam querer saber mais sobre esta história e que gostariam de desenterrá-la.

Foi exatamente o que aconteceu trinta a cinqüenta anos depois. É sempre a terceira geração que arranca o passado do esquecimento: é verdade para os armênios, para os judeus da Europa e para todos os outros. É a geração d@s net@s das vítimas de crimes estatais maciços, concentrados ou diluídos que trazem à tona experiências traumáticas coletivas e as transmite para a próxima. O livro de Jennifer Malika Fatima é, que eu saiba, o primeiro desse gênero, construído sobre as memórias, conversas e os incríveis arquivos cuidadosamente preservados e arquivados por sua avó, uma cabila (supostamente) analfabeta.

Não se trata de uma tese de doutorado com formato acadêmico, que geralmente é ilegível para uma pessoa comum, que por ventura a quisesse ler. O livro de Malika Fatima é um soco que você leva na barriga. Assim que o recebi, o engoli inteiro e o terminei em duas horas. Depois me refugiei atordoado em uma ruminação de algumas semanas. O tempo de digerir. Este texto é o resultado da minha digestão, pois prometi a mim mesmo publicar esta resenha não convencional para o lançamento do livro dia 7 de abril.

O livro, pelo qual Jennifer Malika Fatima foi apoiada de forma fraterna e respeitosa pela escritora Asya Djoulaït para a formatação do manuscrito e pelo historiador Sami Ouchane para a apresentação dos documentos extraídos dos arquivos - que não tentaram impor-lhe uma formatação acadêmica -, é magnificamente posfaciado pela querida Rachida Brahim, outra estrelinha brilhante das gerações vindouras a quem eu havia dito a mim mesmo que meu livro seria capaz de falar.
O livro beneficiou-se de uma edição cuidadosa e exemplar de uma jovem editora feminista em Marselha,
Hors d'atteinte[Fora de alcance], que descobri com deleite, e cujo catálogo perturbou minhas glândulas salivares, ao ponto de amanhã ter uma consulta com meu dentista para a remoção de um cisto mucoso.

Parabém Senhoras, vocês me curaram de qualquer tentação de condescendência. Acho que pertencemos à mesma espécie: a dos humanos que não sabem do que se está falando quando alguem diz: pensões. Vou terminar com esta frase de Nietzsche que concluiu meu livro: “O homem de longa memória é o homem do futuro”. Homem, é claro, tomado no sentido de Mensch, ser humano, em alemão e yiddish.

Portanto, não hesite e corra para sua livraria local (esqueça Amazonzon*, por favor!) e encomende o livro se você puder ler em francês (ele é distribuído pelo Harmonia Mundi). Caso contrário, você terá que esperar por uma versão em português. Trabalhamos nele. Qualquer editora interessada pode escrever para tlaxint[at]gmail.com.

Nota

*Zonzon é uma antiga palavra francesa que significa zumbido, mas na gíria francesa significa prisão (por aférese de prison) como substantivo, e louco como adjetivo. E de fato, o império de Jeff Bezos é uma prisão zumbidora.

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