Davide Gallo Lassere, euronomade.info/, 31-3-2023
Traduzido por Florence Carboni, editado
por Fausto Giudice,
Tlaxcala
Nós também vimos primeiro o desenvolvimento capitalista e, a seguir as
lutas dos trabalhadores. Isto é um erro. Devemos reverter o problema, mudar o
sinal, partir do princípio: e o princípio é a luta da classe trabalhadora.
(Mario Tronti)
Desde o século XIX, o internacionalismo tem sido um dos pilares fundamentais dos movimentos revolucionários, sejam eles antiescravatura, operários, anticoloniais ou outros. O internacionalismo, enquanto extensão do campo de luta além do Estado-nação, é uma das três principais características dos movimentos comunistas, juntamente com a abolição da propriedade privada e o desmantelamento da forma Estado.
Londres, 1864: fundação da primeira International
Entretanto, se considerarmos a vastidão e
a importância da história dos movimentos inter ou transnacionais (de acordo ao
modo como se desdobram - se entre ou além das fronteiras nacionais), ficamos
surpresos com a riqueza do material empírico e historiográfico em comparação
com uma certa pobreza em teorização [1]. De fato, pode-se argumentar que o
internacionalismo, enquanto fenômeno histórico e político, é fundamentalmente
sub-teorizado. Portanto, poderíamos perguntar até que ponto é possível
desenvolver, se não uma filosofia política, ao menos uma teoria social e
política do internacionalismo? Ou, ao contrário, indo mais longe, imaginar que
existe uma ontologia e uma epistemologia específicas dos movimentos inter e/ou
transnacionais? E então, para além das peculiaridades nominais, qual ou quais
denominações são mais apropriadas: internacionalismo ou transnacionalismo?
internacionalismo subnacional ou transnacional (Van der Linden, 2010)? Local ou
global (Antentas, 2015)? Forte ou fraco (Antentas, 2022)? Material ou
simbólico? Revolucionário ou burocrático? Comunista ou liberal? Operário?
Feminista? Antirracista? Ecologista? O internacionalismo em si mesmo é um meio
ou um fim? E, é claro, a lista poderia continuar [2]...
Paris, 14 de julho de 1889: fundação da Segunda Internacional
Contudo, o que é altamente significativo, hoje mais do que nunca - em um
momento de grande crise econômica e social, quando os ventos de guerra entre as
potências mundiais estão soprando novamente, em um mundo pós-pandêmico e
superaquecido - é o fato de que a questão estratégica do internacionalismo está
voltando à vanguarda dentro dos movimentos sociais e políticos: há uma
consciência crescente de que estas forças hostis não podem ser derrotadas
lutando em ordem aleatória, cada homem por si, confinado dentro do perímetro de
nossos Estados-nação, ou permanecendo ancorado nos territórios, implementando exclusivamente
práticas micropolíticas. É necessário poder intervir no mesmo nível destes
processos, que são por definição globais e planetários. Para isso, devemos ser
capazes de desenvolver raciocínios e práticas que estejam à altura dos desafios
colocados pela geopolítica, mecanismos de governança, do mercado global às
mudanças climáticas etc. Mas, na história dos movimentos radicais e
revolucionários, tais raciocínios e práticas são chamados de internacionalismo
e, em menor medida, de cosmopolítica [3].
É por isso que hoje parece mais importante do que nunca repensar o
internacionalismo. A boa notícia é que não estamos começando do zero. Na
verdade, os anos 2010 foram pontuados pela erupção de numerosos protestos e
revoltas contra as consequências radicalmente antissociais e antidemocráticas
das diversas crises (econômica, política, sanitária, climática, etc.). A má
notícia é que a década atual, e as que virão, são, e serão cada vez mais,
perturbadas pela intensificação dos confrontos geopolíticos e pelo
aprofundamento das possibilidades de uma catástrofe ecológica. Ciclos futuros
de luta surgirão em um mundo cada vez mais perturbado por claras contradições e
antagonismos. E eles serão forçados a operar neste contexto modificado. O que
segue, portanto, são apenas nove teses simples, elaboradas a partir de algumas
experiências francesas e europeias, com o objetivo de destacar o que poderia ser
considerado os pontos fortes e fracos dos movimentos globais dos anos 2010.
Elas pretendem ser uma pequena e parcial contribuição ao debate político
imanente a esses movimentos, mas também uma tentativa preliminar e não
exaustiva de enquadrar a questão do internacionalismo de forma original, de
modo a reler em luz de fundo a história bicentenária das lutas inter ou
transnacionais, desde as ressonâncias globais de 1789 até o ciclo altermundialista,
passando pelas datas simbólicas de 1848, 1917 e 1968 [4].
Moscou, 1919: fundação da Terceira Internacional
Tese 1: Ontologia I: Fábrica Terrestre
As lutas sociais e políticas estão no centro da transição para o
Antropoceno. Enquanto motores do desenvolvimento capitalista, elas são cruciais
para compreender os processos que definem as múltiplas crises ecológicas
contemporâneas. Dito de outra forma: a explosão das emissões de CO2 na
atmosfera e a progressiva destruição da natureza estão intimamente ligadas às
lutas de classe e anticoloniais; são um "efeito colateral" da
resposta capitalista aos impasses induzidos pelas práticas de resistência e de
contrasujeição de subalternos. O aquecimento global, por exemplo, é o resultado
de antagonismos entre grupos humanos e, como tal, alimenta ainda mais as
tensões sociais, econômicas e políticas. Esta é a ideia básica de parte da
historiografia ecomarxista, seu diagnóstico do presente e suas perspectivas de
ruptura futura. A mudança de temperatura na Terra - provocada principalmente
pelo uso capitalista de combustíveis fósseis - é um produto impuro de conflitos
sociopolíticos passados e presentes. Quer se tenha uma visão sincrônica, global
ou focalizada na Inglaterra (pré)vitoriana, continua clara a centralidade da
luta de classes. De fato, desde meados do século 19, em todo o mundo, a adoção
dos combustíveis fósseis como fonte primária de acumulação de capital tem sido
imposta à força em reação à rejeição do trabalho e à apropriação da terra pelos
trabalhadores e pelos colonizados; foi a combatividade dos explorados que levou
o capital e os governos a introduzir primeiro o carvão e a seguir o petróleo e
o gás. Como Andreas Malm (2016) e Timothy Mitchell (2013) mostram
admiravelmente, a mudança do carvão para o vapor por volta de 1830 e do carvão
para o petróleo por volta de 1920 é melhor entendida como projetos políticos
que respondem aos interesses de classe do que como necessidades econômicas
inerentes às duras leis do mercado.
O que talvez não seja suficientemente enfatizado por esses estudiosos é o
fato de que as medidas postas em prática pelas classes dirigentes para domar o
conflito implicaram não apenas mudanças sócio energéticas, mutações tecno
organizacionais e reconfigurações geoespaciais, mas também uma socialização
mais consistente das forças produtivas e uma crescente integração da natureza
nas malhas do capital. Desta forma, a Terra - e não apenas a sociedade - tem se
transformado cada vez mais em uma espécie de fábrica gigante. Hoje, uma
quantidade crescente de relações sociais e naturais está direta ou
indiretamente subjugada ao capital. Desde a instrução e a saúde da força de
trabalho até as inúmeras externalidades positivas proporcionadas gratuitamente
pelo meio ambiente, pelas plantas e pelos animais, quase nada hoje escapa à
lógica do lucro. E o domínio da produção social sobre a reprodução natural está
alterando o equilíbrio dos ecossistemas ao ponto de ameaçar as próprias
condições de sobrevivência da humanidade. Portanto, o próprio internacionalismo
requer uma revisão radical. Se, de fato, a globalização do comércio e da
produção constituiu a base material do internacionalismo abolicionista e
operário, e se a dimensão global do imperialismo representou a arena
geopolítica do internacionalismo anticolonial, os efeitos planetários das crises
ecológicas configuram toda a Terra como o teatro dos novos confrontos que estão
ocorrendo. Esta mudança de paradigma, no entanto, não implica simplesmente uma
ampliação de escala e uma complexificação do quadro de referência, mas sim uma
verdadeira revolução em nossos hábitos de pensamento e de ação.
Aqui, então, está a primeira tese sócio-ontológica através da qual pode ser
elaborado um internacionalismo adequado aos desafios colocados pelo
Antropoceno: dentro da fábrica terrestre - que também é resultado de ciclos
globais de conflitos anteriores - há não apenas grupos opostos de seres humanos
lutando uns contra os outros, mas também seres não-humanos e não-vivos
participando plenamente da tragédia histórica em curso. De fato, a destruição
de ecossistemas, ambientes, natureza, etc. em uma parte do mundo produz cada
ciclos retroativos, imprevisíveis, com efeitos catastróficos em regiões
completamente diferentes. E os ambientes e entidades perturbados pela pegada
humana são cada vez menos meros fundos inertes; sua violenta irrupção na cena
política, como no caso da pandemia de Covid-19, muitas vezes polariza ainda
mais os antagonismos, sem que, necessariamente, se abram cenários cor-de-rosa.
A inclusão do outro-que-humano, não apenas no tabuleiro político, como
também enquanto tabuleiro político, vira a mesa de modo profundo. Entre outras
coisas, uma tal reviravolta, de tal alcance geral, reveste uma grande
importância para a velha questão da classe, de sua composição e organização. De
acordo com uma "corrente quente" do marxismo que vai desde os
escritos histórico-políticos de Marx até o operaismo italiano, não há classe
sem luta de classes. Esse pressuposto atribui uma primazia ontológica à subjetivação
política em relação às determinações socioeconômicas. Mario Tronti (2013)
relatou esta epopeia antagônica, cujos protagonistas - trabalhadores e capital
- encarnam as características místicas de uma filosofia da história culminante
na sociedade sem classes. Se a convicção em um futuro radiante não parece mais
apropriada, esta abordagem relacional, dinâmica e conflituosa da realidade de
classe ainda é válida hoje. Contrários a qualquer visão sociologisante e/ou
economicista, os operaístas jamais se conformaram com simples descrições
empíricas destinadas a destrinçar a posição objetiva dos sujeitos dentro das
estruturas sociais. Para eles, a transição do proletariado para a classe
operária não aconteceu automaticamente com base em uma simples concentração em
massa de trabalhadores dentro das grandes fábricas do século XIX. Ao contrário,
foi o resultado de um salto inteiramente político-organizacional e
autoconsciente. Para reconhecer e explicar uma tal mudança qualitativa, os operaístas
forjaram o conceito de composição de classe, que esclarece as diferenças
materiais e subjetivas que caracterizam a força de trabalho e que devem ser
levadas em conta na questão da organização.
Isto leva à segunda tese: doravante qualquer internacionalismo coerente e
eficaz deve necessariamente se apresentar como uma "cosmopolítica",
baseada em uma compreensão ampliada da agência política - ou, como diz
Paul Guillibert (2021), do "proletariado vivo". Esta ruptura
fundamental implica não apenas ancorar a política à ecologia e à condição
terrestre, como também reconhecer o núcleo híbrido de qualquer coalizão, muito
além do que a interseccionalidade das lutas tem sido capaz de conceber e
praticar, com sua articulação e sua sincronização das interdependências de
classe, gênero e raça. Portanto, a subjetividade e a identidade dos coletivos
envolvidos terão que se deixar remodelar na sua raiz, pois qualquer aliança
deste tipo implica reconsiderar de modo drástico o antropocentrismo que tem
caracterizado a política internacionalista e a visão de mundo natural-histórica
de muitos movimentos sociais até hoje. Tal é o enigma da composição
sócio-ecológica de classe a ser resolvido.
Tese 3: Geopolítica: (Crítica dos) dualismos
No século XX, a luta de classes subiu ao nível de um confronto geopolítico:
primeiro com a transformação soviética, em 1917, da guerra mundial interimperialista
em uma guerra civil revolucionária, depois com as intervenções ocidentais e
japonesas, em 1918, na guerra civil russa, e finalmente com a fundação em 1919
da Terceira Internacional, ou Internacional Comunista. Esta situação de guerra
de classe global, apesar das numerosas reviravoltas, cristalizou-se na Guerra
Fria, com a consolidação das duas macroáreas concorrentes e a posterior
tentativa do movimento não alinhado de escapar desta rígida bipartição do
planeta. A configuração atual é, em muitos aspectos, drasticamente diferente,
especialmente no que diz respeito aos temas do dualismo e da catástrofe. De
fato, com a perspectiva de guerra nuclear sempre presente, a segunda metade do
século 20 envolveu a divisão do mundo em dois campos geopolíticos e a
atribuição de continentes e nações a um ou outro. Em contraste, a desordem
global que surgiu após o 11 de setembro e o fim da chamada pax americana não
coloca mais um bloco liberal-capitalista contra um bloco alternativo, sob a égide
do qual as forças radicais-progressivas ou mesmo revolucionárias devem
florescer. Por enquanto, quanto mais fundo entramos no Antropoceno, menos vemos
no horizonte grandes espaços capazes de catalisar processos
emancipatórios em larga escala. Trinta e cinco anos após a “queda da Cortina de
Ferro”, o mundo certamente se tornou menos unipolar, mas o lento declínio da
hegemonia ocidental tem andado de mãos dadas com um cenário geopolítico cada
vez mais instável, caótico e perigoso, no qual os pretendentes a uma
redefinição das estruturas de poder são cada vez mais assertivos. Hoje, o fim
do desarmamento deu lugar a uma corrida louca para o acaparamento de recursos
preciosos e de oportunidades comerciais, bem como de soft e hard power,
obscurecendo as perspectivas de transição para um modelo socioeconômico
ecologicamente sustentável, no qual as relações de poder geopolíticas fossem
mais equilibradas.
A exacerbação das tensões interimperialistas em um mundo cada vez mais
multipolar, longe de apoiar a formação de movimentos de
resistência/alternativos, pode não apenas reforçar as tensões autoritárias dos
capitalismos ocidentais, mas acentuar ainda mais as tendências belicosas e
militaristas destinadas a redesenhar as linhas de falha geopolíticas do início
do século 21. Em tal conjuntura global, é evidente que a (antiga) superpotência
norte-americana e seus aliados já não detêm o monopólio da iniciativa através
de seus exércitos militares (OTAN) e financeiros (FMI): a China e a Rússia,
assim como numerosos outros países e atores não estatais, estão cada vez mais
fugindo dos diktats ocidentais, alimentando tendências centrífugas que não
levarão necessariamente a uma melhoria das condições de vida das classes
subalternas ou da habitabilidade do planeta. Ao contrário, os contínuos
antagonismos geopolíticos incitam cada vez mais estados e empresas à
apropriação desenfreada de matérias-primas e de combustíveis fósseis, ao
cruzamento das fronteiras e à invasão de espaços dentro e fora dos limites
nacionais. Deste ponto de vista, não somente as fronteiras do capital e da
soberania estatal desmascaram-se em relação à estreita relação que tinham
durante a era moderna, mas as repercussões negativas de tais operações
extrativas não mais afetam, como era o caso no imperialismo tradicional,
principalmente as populações locais, mas têm um impacto imediato em escala
planetária. De fato, as guerras atuais, mais do que as do passado, demonstram
ter uma dimensão geoecológica, da qual as lutas antiextrativistas dos povos indígenas
constituem muitas vezes a frente mais avançada. Embora em seus séculos de
história anticolonial eles não se tenham representado como ecológicos em si e
para si, elas assumem um novo significado precisamente à luz do
aquecimento global.
A terceira tese, portanto: hoje o internacionalismo, em sua dimensão
constitutivamente antiimperialista, não pode deixar de ser tingido de verde,
pois no Antropoceno a invasão de espaços e territórios não ocorre mais apenas manu
militari, com meios anfíbios e aéreos, mas é realizada de forma muito mais
insidiosa, ramificada e persistente, através da poluição do solo, dos mares e
dos céus e através da devastação multiescalar dos equilíbrios dos ecossistemas.
Tal estrutura requer pelo menos dois esclarecimentos: 1. o abandono definitivo
da velha lógica campista pela qual o inimigo de meu inimigo é meu amigo - na
verdade, temos múltiplos inimigos em guerra entre si, dentro e fora das
fronteiras dos estados-nação em que vivemos e além de suas respectivas esferas
de influência geopolítica; 2. a necessidade de ligar as lutas territoriais
contra o extrativismo, onde quer que elas ocorram (América do Norte ou do Sul,
China ou Rússia, Europa ou Oceania, África ou Oriente Médio), às dos migrantes
climáticos e pela justiça ambiental e climática. Mas esta triangulação virtuosa
só pode ser realizada em escala transnacional, muito além das fronteiras da
chamada Nova Guerra Fria.
29 países africanos e asiáticos independentes e observadores de vários movimentos de libertação colonial participaram da Conferência de Bandung (Indonésia) em 1955. Na foto, o mufti palestino Hay Amin Al Husaini com o primeiro-ministro chinês Chu en Lai, que acabara de escapar ileso do primeiro atentado aéreo da história
Tese 4: Geografia: Composição espacial e circulação transnacional
Segundo a visão dominante, após o colapso do socialismo real, teria sido
estabelecido um jogo de soma zero no qual "mais globalização"
equivale a "menos fronteiras". Nesta perspectiva, o afrouxamento das
barreiras entre os estados nacionais (acordos de livre comércio, transferências
de tecnologia, liberalização de investimentos estrangeiros diretos, integração
dos sistemas de produção, construção de espaços institucionais supranacionais
etc.) sinalizaria irrefutavelmente a gradual erosão do significado das
fronteiras. Na realidade, desde a queda do Muro de Berlim, as fronteiras se
multiplicaram e diversificaram. Como Sandro Mezzadra e Brett Neilson (2014)
mostram brilhantemente, não apenas as tendências para a
"desnacionalização" foram contrabalançadas pelas tendências para a
"renacionalização", mas as fronteiras se multiplicaram e se
diversificaram. Enquanto a desregulamentação financeira e econômica andou de
mãos dadas com o fortalecimento das forças policiais e de segurança, o mundo
experimentou uma explosão de espaços intra e transnacionais: zonas econômicas
especiais, corredores logísticos, distritos financeiros, enclaves mineiros e
assim por diante. Nos interstícios entre esses locais e ao longo das linhas de
demarcação que traçam os contornos das geografias sociais contemporâneas, a
soberania nacional, tal como foi elaborada durante a modernidade, foi
significativamente superada e os capitalismos contemporâneos assumiram novas
constituições materiais. Atualmente, a paisagem global não apenas parece
instável, mas também parece fundamentalmente compósita e em constante
reconfiguração. Além disso, a materialidade ontológica do capitalismo global
atual ultrapassou as distinções binárias entre o Ocidente e o resto do mundo,
forçando-nos a reconsiderar as suposições epistemológicas das teorias do
sistema-mundo e das teorias do "desenvolvimento desigual e
combinado". De fato, as descrições das relações geoeconômicas e
geopolíticas do (neo-)colonialismo e do (neo-)imperialismo propostas por essas
abordagens são mais frequentemente baseadas em uma concepção rígida da divisão
internacional do trabalho, ou mesmo em dicotomias topográficas que se opõem
diretamente ao "centro" às "periferias" ou
"semiperiferias". A fase mais recente da globalização, por outro
lado, está gerando um novo entrelaçamento do que há muito tem sido rigidamente
hierárquico, a saber: uma tendência a se tornar Norte de (certas partes
do) Sul e uma tendência a se tornar Sul de (certas partes do) Norte.
Esta convulsão geográfica não demorou muito para se manifestar a nível
político. Do ponto de vista da composição espacial e da circulação
transnacional das lutas, os movimentos dos anos 2010 conseguiram quebrar
qualquer esquematização rígida entre o Norte global e o Sul global - uma
distinção que, como já dissemos, é em parte cada vez mais obsoleta para a
própria acumulação do capital. As ocupações das praças, por exemplo, partiram
da costa sul do Mediterrâneo e circularam por grande parte do Magrebe e do
Oriente Médio, depois pela Grécia e Espanha, finalmente atravessando o Oceano
Atlântico e chegando aos Estados Unidos, antes de reemergir dois anos depois na
Turquia e no Brasil. O novo movimento global feminino teve uma trajetória
semelhante: nasceu na Polônia e Argentina no outono de 2016, logo alcançou os EUA,
Espanha e Itália, depois a Turquia e muitos outros países latino-americanos,
antes de explodir no fenômeno global do #metoo. E mesmo se pegarmos um caso sui
generis como o dos Coletes Amarelos, podemos ver como as geografias
tradicionais da política francesa foram viradas de cabeça para baixo: a
mobilização que emergiu das áreas periurbanas, dos subúrbios próximos e difusos
(as franjas internas da República) foi imediatamente recebida com grande
entusiasmo nos territórios ultramarinos (os 'remanescentes' do império
colonial), e depois - especialmente durante as manifestações de sábado - nos
corações dourados de todas as maiores cidades francesas. Além disso, é uma
lição semelhante a extrair de uma revolta extraordinária como os protestos
contra a violência policial nos EUA na primavera de 2020: dentro do próprio
"coração" do império, as pessoas racializadas têm que lutar contra o
legado ainda em curso da escravidão, ou seja, o caráter estrutural do racismo e
da supremacia branca.
A quarta tese poderia, portanto, ser expressa da seguinte forma: a velha
coincidência estabelecida pelo operaísmo entre composição técnica e política
(Lênin na Inglaterra, Mario Tronti, 1964), assim como o velho credo leninista/terceiro-mundista,
não são mais relevantes; não podemos agora pensar em apostar tudo politicamente
no "ponto mais avançado do desenvolvimento capitalista" ou, ao
contrário, no "elo mais fraco do comando imperial". A composição
espaço-temporal do capitalismo contemporâneo exige uma mudança de perspectiva.
Os casos citados nos mostram que de agora em diante não podemos mais
estabelecer a priori um local (o Norte ou o Sul, o Oeste ou o Leste, a
metrópole ou o "campo") como o espaço privilegiado do qual surgirão
as lutas. O mundo de hoje é muito mais complexo e interconectado do que no
passado, e o mesmo se aplica à composição espacial e à circulação transnacional
das lutas.
Tese 5: Ontologia II: Sobre a dialética particular/universal
O capital é uma força histórica que homogeneíza e diferencia; desde o
início da modernidade, ele se desenvolveu em escala global através de operações
de universalização, que, no entanto, nunca reduzem os territórios e
subjetividades sobre os quais ele exerce poder para completar a uniformidade.
Pelo contrário: o capital produz tanto identidades quanto singularidades; é uma
relação social geral que se expressa de maneira específica de acordo com os
contextos histórico-geográficos e político-econômicos. Neste sentido, o capital
manifesta uma tendência totalizante sem nunca dar origem a uma verdadeira
totalidade, plenamente realizada e encerrada em si mesma. De fato, ele é
constitutivamente caracterizado por uma conexão íntima com o exterior, com o
que o excede e está fora dele. E são precisamente estas externalidades que
substanciam a contingência e a heterogeneidade em que é encarnada de tempos em
tempos. Sua poliedricidade é assim dada por sua capacidade de se adaptar à
variedade de situações, aproveitando a diversidade generalizada de fatores
objetivos e subjetivos que a confrontam. Através de seus contínuos impulsos
expansivos - extensivos (ou horizontais) e intensivos (ou verticais) - tende
constantemente a absorver e produzir novos espaços, recursos e ambientes, ao
mesmo tempo em que submete, na medida do possível, novas forças de trabalho
(Silver, 2008). De fato, se não encontrarem resistência, as espirais
tridimensionais de valorização se estendem cada vez mais para fora e se adensam
cada vez mais para dentro. As fronteiras móveis do Gesamtkapital, porém,
em sua incessante necessidade de absorver novos elementos naturais, sociais e
humanos, encontram limites para seu crescimento. Mas estes limites não são
sempre e somente determinados por contradições objetivas e imanentes - mudanças
na composição orgânica, obsolescência tecnológica e organizacional, exaustão de
certos mercados, diferentes formas de concorrência etc. Eles também podem
transcender, ainda que parcialmente, estas contradições e assumir uma natureza
subjetiva e política.
Como uma relação social, o capital está de fato entrelaçado por definição
com a "alteridade". A fenomenologia de seus "outros" é
bastante copiosa: uma natureza cada vez mais historicizada, toda uma série de
campos, esferas e domínios sociais que resistem à mais completa
mercantilização, mas também e sobretudo à vida profissional e ao comportamento
insubordinado. Agora, durante a última década, assistimos ao surgimento no
cenário global de diferentes ciclos de mobilização que, por sua vez, assumiram
a dialética do particular e do universal que caracteriza, tanto lógica como
historicamente, a acumulação capitalista. De fato, em muitos casos nos últimos
dez anos, os movimentos têm procurado unir lutas direcionadas com projetos de
transformação social mais ampla. Seja o derrube de um tirano, a oposição à
reestruturação social austera, a revolta contra os efeitos da especulação
financeira, o protesto contra um plano de reordenamento urbano, a contestação
do aumento dos custos dos transportes públicos, a luta contra a violência
sexual e de gênero, a batalha para contornar os regimes de fronteira, ou a
frustração generalizada com o "alto custo de vida", a injustiça
fiscal, a brutalidade policial, a corrupção do sistema político, o clima e o
negacionismo pandêmico, etc., os movimentos que surgiram ao longo dos anos têm
se unido de várias maneiras, os movimentos que surgiram durante a década de
2010 procuraram ir além das estruturas (mais ou menos estreitas) de suas lutas
específicas para desafiar a crise do sistema capitalista como um todo e suas consequências
antissociais, antidemocráticas e antiambientais. Apesar de todas as suas
limitações e dificuldades, eles têm sido muitas vezes capazes de mostrar o
caráter estrutural das formas de dominação contra as quais lutam, permanecendo
sempre capazes de elevar a generalidade das perspectivas políticas a partir de
reivindicações específicas.
Quinta tese: isto nos mostra como nenhuma instância pode a priori aspirar a
ocupar o centro do palco, determinando os ritmos e as apostas das revoltas e
empurrando a todos para se recomporem em torno dela: os direitos sociais e
políticos, claro, mas também as tão apregoadas políticas de identidade ou,
mais ainda, as múltiplas facetas da crise ecológica: cada uma destas causas, no
calor dos acontecimentos, pode de fato proporcionar um ponto de encontro em
torno do qual se possa lançar uma ampla dinâmica de mobilização...
potencialmente capaz de provocar uma ruptura histórica! São, portanto, os
pontos fortes e as limitações/fracos dos movimentos realmente existentes que
precisam ser considerados, examinando em detalhes e de um ponto de vista
radicalmente imanente a particularidade de cada situação concreta, sem
lamentar os bons velhos tempos em que os movimentos sociais e revolucionários
realmente ousavam fazer o Estado ter medo e o capital sofrer.
Tese 6: Prática I: Resistência e prefiguração
Estas observações nos levam a voltar às questões que há muito tempo têm
assolado as forças revolucionárias dos séculos XIX e XX: por exemplo, a
oposição entre reforma e revolução, a articulação entre tática e estratégia, a
relação entre sindicatos, partidos e movimentos sociais. Como se apresenta hoje
o papel e a coerência da ideia de democracia, diante do aprofundamento das
crises, da ascensão da extrema direita e da viragem autoritária do Estado? Como
um mundo pandêmico sujeito ao aquecimento global acelerado nos obriga a repensar
a relação entre práticas antagônicas e institucionalizadoras? Em que medida os
cenários de guerra permanente e a nova situação geopolítica nos obrigam a
colocar problemas práticos e organizacionais de novas maneiras? Estas questões
ajudam a delinear um cenário dramático no qual a política do antipoder e a
política do poder devem ser repensadas à luz da urgência crônica - o único
horizonte insuperável de nosso tempo. Não é por acaso, portanto, que os
movimentos sociais contemporâneos tentam trabalhar na direção de uma
pluralização de perspectivas, entrelaçando, por um lado, lutas sociais,
políticas, ecológicas, transfeministas e descoloniais no Norte global com as do
Sul global e, por outro lado, combinando diferentes repertórios de ação:
manifestações, greves, bloqueios, acampamentos, ocupações, revoltas, sabotagens
ou campanhas eleitorais.
E de fato, durante a última década, os movimentos antirracistas, por
exemplo, não hesitaram em experimentar uma multiplicidade de táticas (confronto
com as forças da lei e da ordem, motins, saques, incêndios, mas também ocupação
de espaços públicos, constituição de assembleias baseadas na democracia direta,
julgamentos para obter verdade e justiça), para desvendar as múltiplas camadas
de racismo (em locais de trabalho, escolas, prisões, acesso à saúde, moradia,
etc.), começando com os assassinatos de jovens não-brancos pela polícia, e o
assassinato de jovens não-brancos pela polícia.), a começar pelos assassinatos
de jovens não-brancos pela polícia. Quanto às revoltas populares de 2018-19, a
maioria das quais foi desencadeada pelo aumento dos preços de bens e serviços
básicos, os picos insurrecionais, os bloqueios da economia e das metrópoles e a
invenção de formas horizontais de auto-organização foram capazes de manter
juntos a conflitualidade e o poder compensatório, exigindo mais dinheiro e
reapropriando a política. O mesmo se aplica a vários movimentos transfeministas
e ecologistas: a vontade de se opor ao patriarcado ou de lutar contra a
exploração indiscriminada da natureza não só não exclui, mas antecipa a
autêntica libertação do desejo e a experimentação concreta de formas
alternativas de vida cotidiana, nas quais as interações interpessoais e as
relações com o meio ambiente e outros seres vivos não reproduzem as lógicas de
poder prevalecentes hoje. Estas expressões de resistência e alternativa, de
ofensiva e autodefesa, de criação de laços e de construção de espaços de
autonomia, constituem exemplos muito concretos e produtivos de poder político,
que se concretizam na combinação de duas lógicas largamente complementares: 1.
a eficácia imediata da oposição ao Estado, aos chefes e às forças de ordem; 2.
o trabalho de construção, a curto/médio prazo, de áreas de autonomia e de
lugares capazes de experimentar contra-instituições não soberanas e
anticapitalistas, nas quais se organizam espaços de concentração difusa da
força.
Aqui, então, está a sexta tese: na maioria dos casos, para os movimentos
sociais contemporâneos, a necessidade de resistir a múltiplas relações de
dominação (em casa, no trabalho, nas ruas, nos bairros, nos territórios etc.)
não está dissociada do desejo de afirmar novas formas de vida no mundo e com
outros, aludindo, ainda que implicitamente, à dissolução de muitas dicotomias
que estruturaram a tradição revolucionária, como a tradição revolucionária da
"revolução social". Isto alude, ainda que implicitamente, à
dissolução de muitas dicotomias que estruturaram a tradição revolucionária,
tais como as entre centralização e descentralização, unidade e diversidade,
macropolítica e micropolítica, partido e movimento, organização e
espontaneidade, hegemonia e autonomia, e assim por diante. Esta indicação, no
entanto, muitas vezes permanece distorcida em favor do segundo polo dos díades.
De fato, em seu próprio desdobramento, movimentos recentes exigem a
implementação, aqui e agora, de práticas que prefiguram um futuro emancipado,
renunciando à velha subordinação dos meios aos fins ou à hierarquização dos
motivos de luta.
Tese 7: Práticas II: Processos de Subjetivação e Enquete Militante
A última tese não implica que os movimentos sociais não possam ser
criticados, nem implica que todas as reivindicações que eles fazem sejam
equivalentes. Trata-se antes de seguir suas dinâmicas a partir de dentro, participando
ativamente de seu autodesenvolvimento através, por exemplo, do esclarecimento
de razões e objetivos e da consolidação de caminhos de mobilização. Neste
sentido, a prática da enquete militante, cujo papel consiste em um processo de
transformação mútua da subjetividade em luta e do contexto material, é de
grande utilidade. Praticar a indagação militante significa permanecer sempre
fiel à singularidade da contingência ou, dito de outra forma, desenvolver uma
abordagem radicalmente materialista e fundamentalmente pragmática, rejeitando
qualquer tipo de apriorismo político - seja ele de vanguarda, savant
[erudito] ou baseado na identidade. Com a enquete militante, o foco está
nos processos de subjetivação, perguntando: o que leva os sujeitos a não mais se
submeter passivamente às condições que lhes são impostas, mas a reagir, a fazer
algo em conjunto, a assumir práticas de luta mais conflituosas, a estabelecer
formas mais avançadas de organização? Ou, onde o conflito não é aberto e
explícito, onde apenas traços sutis ou indiretos de resistência podem ser
encontrados: quais são as dinâmicas através das quais a norma é internalizada?
O que leva indivíduos ou grupos a aceitar, reproduzir passivamente ou mesmo
promover ativamente relações ou condições de sujeição? Em ambos os casos, a
subjetividade é uma questão de luta. Deste ponto de vista, o que importa (a
maioria) não é (tanto) a afinidade política que precede o momento do encontro,
mas o caminho que se percorre em conjunto. Como vocês coevoluem, o que trazem
um ao outro, o que aprendem um do outro e o que fazem ao longo do caminho.
Portanto, não é (somente) a posição ocupada dentro das relações sociais que
faz de um grupo um sujeito político privilegiado. Assim como a classe não é um
dado sociológico, o trabalho (assalariado) - apesar de sua inegável
centralidade - não esgota o terreno de conflito: um estudante, um desempregado
ou um trabalhador precário que luta com determinação pode valer muito mais, em
termos políticos, do que um trabalhador assalariado e grevista que ocupa um nó
vital no processo de acumulação. Além disso, é o conjunto de condições
materiais de vida que parece decisivo, mesmo que o trabalho, em seus múltiplos
avatares, conserve um lugar que não pode ser ignorado. Consequentemente, é necessário
não separar "esfera de produção" e "esfera de reprodução",
ou lutas "econômicas", "sociais", "políticas" e
"ecológicas", mas trabalhar na acumulação de conhecimentos críticos e
na expansão do antagonismo. E novamente, recentemente, a questão da combinação
de lutas contra a exploração e lutas contra a dominação tem sido abordada de
forma estimulante por numerosos movimentos sociais. Sem ter quaisquer ilusões
sobre as relações de poder realmente em ação, as mobilizações contemporâneas
têm dado alguns sinais valiosos. Seja em Tunis, Cairo, Atenas, Madri ou Nova
York, a batalha "econômica" contra a pobreza absoluta, o
desmantelamento do Estado social, o desmoronamento do mercado de trabalho ou o
nó da dívida não foi dissociado da necessidade e do desejo "político"
de tomar decisões relativas à produção e reprodução das condições materiais da
vida coletiva em suas próprias mãos. Com a greve global transfeminista vemos a
transposição para a esfera econômica da cessação temporária de toda atividade
laboral - monetizada ou não, como o trabalho doméstico ou o trabalho afetivo e
sexual - de questões de gênero como aborto, estupro, feminicídio etc. O mesmo
se aplica às marchas climáticas: estudantes de metade do planeta se abstiveram
de seus compromissos escolares às sextas-feiras para sacudir a opinião pública
mundial e a comunidade internacional, exortando-os a não esconder a cabeça
diante da urgência e gravidade de múltiplas crises ecológicas. De um ponto de
vista militante, em todos os casos a tarefa principal é, portanto, empurrar
cada vez mais os processos de subjetivação, radicalizando os níveis de
conflito, ampliando o espectro de reivindicações, aprofundando o questionamento
das relações existentes e ligando as diferentes lutas e seus respectivos
núcleos. A prática da enquete militante, dedicada à coprodução de conhecimento
partidário, revela-se altamente construtiva. Contra qualquer visão pastoral ou
conscientizadora da política, o método da indagação militante propõe uma
abordagem processual na qual o que está em jogo é a autotransformação das
subjetividades através de sua própria atividade de transformação do mundo ao
seu redor. Não se trata, portanto, de instruir os dominados, de ensinar-lhes o
que já sabem muito bem, a fim de experimentá-lo na vida cotidiana para que
possam mudar suas ideias e formas de pensar, mas de criar juntos as condições
materiais e subjetivas para que eles se comportem de maneira diferente.
Sétima tese: a subjetividade é e continua sendo um campo de batalha.
Portanto, somente construindo interioridades para as lutas e estabelecendo uma
presença que possa se enraizar nos lugares onde vivemos e trabalhamos - uma
presença que possa se reproduzir com o tempo - poderemos melhorar nossa
capacidade de tornar os processos de (contra-)subjetivação cada vez mais
virtuosos, fortes e duradouros. Mas nosso poder comum de pensar agindo e de
agir pensando é alimentado pelas análises, narrativas e conhecimentos práticos
feitos por e para as lutas. É por isso que a produção e circulação das diferentes
experiências de luta (suas práticas, símbolos, imaginários, palavras de ordem,
mas também suas derrotas, pontos cegos etc.) constituem um momento preliminar e
complementar para qualquer tentativa de transição para uma sociedade
pós-capitalista.
Mural do artista de rua Zoo Project (Bilal Berreni, 1990-2013) em Túnis
Tese 8: Organização I: Poder de Compensação – Duplo Poder
Diversos caminhos podem ser tomados a partir do que foi dito até agora. O
mais decisivo, entretanto, diz respeito ao aprofundamento do nível
organizacional. A gravidade da situação atual, com sua concatenação de crises
de alcance abismal, reativa a perspectiva política altamente trágica do duplo
poder. De fato, o duplo poder não só constitui uma alternativa viável à ambiguidade
das abordagens populistas e ao renascimento lento da variante reformista, mas
também se destaca em um horizonte de crítica da soberania e da centralidade do
Estado-nação, como surgiu a partir destas breves considerações. Além disso,
permite a combinação e a federação da grande variedade de sensibilidades e
orientações que animam os movimentos contemporâneos, fortalecendo seus laços
transnacionais. Na intersecção da política autônoma e da política
institucional, a perspectiva do duplo poder oferece uma saída para os impasses
em que caíram quase todas as experiências radicais que surgiram durante os anos
2010. Nenhuma delas, por mais disruptiva ou massiva que seja, conseguiu até
agora marcar um avanço duradouro: nem as rupturas da classe trabalhadora das
cadeias de valor globais, nem as irrupções das insurgências do BLM [Black Lives Matter] ou dos Coletes
Amarelos; nem o pacifismo ecológico do Norte global, nem as lutas sindicais,
indígenas e camponesas do Sul global; nem as greves feministas, nem os êxodos
migratórios; nem a assembleia constituinte chilena, nem as hipóteses
progressistas da esquerda europeia, norte-americana e latino-americana.
Hoje, é claro, os Estados estão cada vez mais sob o controle de organismos
supra, inter e transnacionais e estão cada vez mais sujeitos às restrições dos
acordos de governança, atores políticos e processos econômicos que transcendem
suas fronteiras. Consequentemente, parece ilusório considerá-los como o campo
de batalha prioritário para a dinâmica de libertação. Entretanto, isto não
significa que se deva, a priori, desinvestir este espaço de qualquer
engajamento político a fim de entrincheirar-se em um 'exterior' puro, a uma
distância segura desta máquina de recuperação de cada impulso e caminho para a
emancipação. Hoje mais do que nunca não podemos pensar em nos retirarmos para o
perímetro do Estado-nação, tornando-o a única linha de defesa de um anticapitalismo
coerente. Mas também não podemos pensar que podemos realmente afetar
macrofenômenos como as guerras (inter)imperialistas ou o aquecimento global sem
a contribuição de alavancas estatais ou supraestatais. O objetivo é encontrar
uma forma constituinte de manter unidos e organizar politicamente a pluralidade
de reivindicações expressas pela multiplicação subjetiva das situações de
trabalho e de vida, construindo, fortalecendo, experimentando e ligando contrapoderes
capazes de cobrir várias frentes em diferentes escalas: dentro e contra o
aparato estatal, fora e como alternativa a ele, fora e contra ele. Dos bairros
operários aos espaços fronteiriços, passando por lugares de vida, formação,
trabalho, informação etc., todo "realismo revolucionário" (Rosa
Luxemburgo) deve buscar e praticar a consolidação mútua entre instâncias
heterogêneas de libertação dentro de um quadro ontológico-político que explode
posturas de mero princípio. Nem vertical nem horizontal, como diria
Rodrigo Nunes (2021).
De fato, de uma perspectiva histórica, os movimentos revolucionários sempre
conceberam o duplo poder como uma forma de preparar o terreno para uma
sociedade pós-capitalista. Na perspectiva socialista, o duplo poder dá origem a
uma transição longa e gradual; enquanto na perspectiva comunista, a transição é
acelerada e completada por uma ruptura insurrecional. Pelo contrário, ainda
seguindo Mezzadra e Neilson (2021), seria necessário redefinir a questão do
duplo poder em termos de uma teoria de organização: seria então uma questão de
constituir um andaime político estável capaz de se fortalecer e se desdobrar
através da proliferação de núcleos de poder compensatório. O duplo poder,
então, como uma arquitetura permanente para a auto-organização dos movimentos e
a governança da sociedade, ramificando-se através de uma densa rede de contrapoderes.
Embora de forma embrionária, é este legado que proporciona os sucessos parciais
e as grandes derrotas dos ciclos de luta dos anos 2010. As recentes revoltas
tiveram a capacidade de circular slogans, pôr em marcha práticas e acumular
experiências subjetivas, organizacionais e discursivas que abalaram governos em
todo o mundo, mas não foram capazes de interromper o aprofundamento das tendências
de crise - sejam elas financeiras, sociais, geopolíticas, sanitárias ou
climáticas. Por exemplo, na esteira da primeira rodada de conflagrações,
testemunhamos lutas trabalhistas significativas e revoltas antirracistas,
acompanhadas de políticas estatais e institucionais altamente contraditórias -
pelo menos até a recalibração da governança capitalista da pandemia. A este
respeito, Alberto Toscano (2021) e Panagiotis Sotiris (2021) falaram da dupla biopotência.
Esta perspectiva, ancorada na esfera da reprodução (saúde, educação, habitação
etc.), contém em si mesma os traços germinativos de uma contra-estratégia
antagônica à soberania estatal e à governança neoliberal, sendo inteiramente
centrada nas lutas sociais e no conhecimento democrático. De forma mais ampla,
do legado dos Panteras Negros nas regiões baixas à invenção de novas
instituições e formas de autogovernança em Chiapas e Rojava, passando pelas
práticas de contra-conhecimento do movimento ACT UP, a defesa da terra pelas
comunidades indígenas, etc., tais experiências mostram importantes pontos
fortes, mas também explicitam os limites a serem superados. Por um lado, elas
podem constituir o coração pulsante de uma atividade já em curso para
desmantelar as relações sociais capitalistas e as formas de vida inerentes a
elas. E também podem induzir rupturas políticas de vários tipos: desde
secessões territoriais até a autonomia de certos setores sociais, passando por
opções eleitorais sólidas e radicais. Por outro lado, no entanto, com demasiada
frequência tais experiências não se inserem nas esferas mais elevadas da
política e carecem de coordenação transnacional, não afetando verdadeiramente
as forças de inércia que reproduzem as desigualdades sistêmicas. A este
respeito, a pandemia e as ameaças climáticas, bem como o espectro da escalada
militar e do rearmamento nuclear, tornam ainda mais evidentes as deficiências
destas experiências indispensáveis. Portanto, se eles querem continuar a ter
uma palavra a dizer em um mundo à beira do desastre, eles não têm outra escolha
senão ir além de si mesmos.
Tese número oito: a elaboração e realização da perspectiva política do
duplo poder diz respeito ao aumento do poder produzido pela multiplicidade e
heterogeneidade dos contrapoderes; ou, dito de outra forma, a expansão das
fronteiras dos processos de libertação que os diferentes contrapoderes - e suas
ações recíprocas - aspiram/devem determinar. Daí: o poder compensatório como
condição prévia e horizonte do duplo poder. A este respeito, um duplo
esclarecimento. No que diz respeito aos contrapoderes de baixo, eles não devem
ser apenas fins em si mesmos em seu potencial de prefigurar relações
verdadeiramente emancipadas, mas devem também desempenhar um papel crucial para
desafiar a ordem existente. Pelo contrário, os contrapoderes que operam no
nível meso- e macropolítico devem sempre permanecer variáveis dependentes e
funcionais aos processos de libertação, caso contrário correm o risco de se
tornarem escleróticos na dinâmica autorreferencial, burocrática e instrumental,
condenando-se a perder, mais cedo ou mais tarde, qualquer impulso
transformador.
Tese 9: Organização II: Alianças Transnacionais
Algumas das experiências mais significativas dos anos 2010 aconteceram e
foram coordenadas em uma escala eminentemente transnacional, de greves
transfeministas a marchas climáticas, de êxodos de migrantes a redes de
assistência e recepção. Isto não implica, ipso facto, em seu sucesso.
Entretanto, é indiscutível que a mídia ecoa e as (fracas) estruturas
organizacionais através das quais eles se desenvolveram se beneficiaram desta
transcendência das fronteiras nacionais. Outros movimentos, como o BLM ou as
ocupações das praças, produziram ressonâncias além de seu próprio país,
fortalecendo lutas em questões semelhantes em outros lugares. Outros ainda,
como as revoltas populares que pontuaram o período pré-pandêmico de dois anos,
imitaram os estilos, práticas e demandas uns dos outros, inspirando-se e
citando uns aos outros, mas sem realmente se encontrarem em terreno comum. Outros,
como a incrível greve agrária na Índia em 2019 (a maior greve da história da
humanidade), ou mais recentemente as lutas dos trabalhadores chineses contra as
políticas de zero-covid, ou os protestos das mulheres iranianas (e da geração
mais jovem) contra o regime de Teerã, por mais poderosos e perturbadores que
sejam, não conseguiram desencadear processos genuínos de solidariedade,
materiais e simbólicos, em outros lugares. Estes nós não resolvidos nos levam a
levantar a questão, teórica e organizacional, da sincronização e federação
das diferenças, renovando a prática política das alianças. Se, de fato,
após os fracassos do período pós-2008, a questão política primária consiste em
1. a intensificação da pluralidade das lutas que vieram à tona e 2. sua articulação
com base em suas respectivas autonomias, então a perspectiva de uma dinâmica de
proliferação, articulação e sincronização dos centros de luta, ou seja, o
fortalecimento, propagação e harmonização das lutas a partir de diferentes
focos de mobilização, constitui um horizonte fundamental do trabalho político
contemporâneo. Por outras palavras, o internacionalismo implica sempre, por
definição, a capacidade política de traduzir orgânica e discursivamente
diferentes lutas e reivindicações através de espaços, escalas e subjetividades
heterogêneas.
De fato, a relativa autonomia de cada uma das estruturas de dominação, sua
mútua irredutibilidade, não exige de forma alguma o sacrifício de um componente
em detrimento dos outros. Pelo contrário, ela revela sua simultaneidade,
abrindo uma política de articulação (Hardt, Negri, 2020). Esta abordagem
é declinada espacialmente de duas maneiras diferentes, mas interligadas,
dependendo se os processos organizacionais são em escala local ou
transnacional. No caso de alianças locais, isto implica em não separar as
opressões de gênero-raça-sexo da exploração laboral, e não simplesmente resumir
as diferentes formas de dominação: como trabalhadora + mulher + negra +
lésbica, indo em busca das subjetividades mais exploradas/oprimidas. O cerne da
questão não é imaginar alianças externas ou simples coalizões entre uma
pluralidade de subjetividades díspares, cada uma das quais apoia as lutas das
outras sem se deixar transformar intimamente por elas a partir de dentro. É uma
questão de ter em mente o fato de que a classe é moldada pelas dimensões de
raça, gênero, sexo, desigualdades espaciais e ambientais, etc., e que as lutas
ecológicas, transfeministas, antirracistas, etc., são constitutivas de classe
(luta). Eis o que Sadri Khiari primeiro chamou de 'internacionalismo doméstico'
e depois de 'internacionalismo descolonial' (2013), e o que Angela Davis, em um
registro um pouco diferente, chamou de 'interseccionalidade das lutas' (2016).
No caso das alianças transnacionais, por outro lado, trata-se principalmente de
construir a distância redes de apoio ativo para a dinâmica no trabalho, a
começar pelas reivindicações inerentes a elas. Desde questões alimentares, de
saúde e humanitárias que agitam cada vez mais vastas regiões (não só) do Sul
global, até revoltas baseadas em reivindicações mais clássicas como trabalho,
renda, justiça, democracia etc.: as subjetividades envolvidas não só não podem
permanecer intocadas, mas devem acompanhar o ritmo em conjunto.
Nona tese: uma coalizão intersetorial e uma aliança transnacional são espaços de composição para uma multidão heterogênea de pessoas, cuja sintonia é vital para a renovação do internacionalismo nos dias de hoje. De fato, é justamente com base na irredutível pluralidade e diversidade de subjetividades que lutam contra o estado de coisas existente que surge o enigma organizacional das a-sincronicidades a serem concedidas: não apenas o desenvolvimento do capital, mas também o do anticapitalismo depende deste nó. Dito isto, um internacionalismo à altura dos desafios do presente deve ser sempre capaz de evitar o duplo tropeço do historicismo e a cínica priorização de objetivos que caracterizaram muitas experiências do século XX (Chatterjee, 2016). Apesar de suas inegáveis limitações e fracassos, não há dúvida, entretanto, que as experiências de altermundialismo do início dos anos 2000 e a multiplicidade de revoltas em 2010 ofereceram uma oportunidade concreta para repensar práticas de solidariedade e aliança política além das especificidades das condições de vida e de trabalho e além das fronteiras de cada Estado-nação. Como a tela de uma polifonia ainda sendo escrita, elas ajudam a prefigurar o que o transnacionalismo no século 21 pode e deve ser.
Notas
[1] Há muitas histórias das três (ou
quatro) internacionais e do movimento não-alinhado, assim como há muitos livros
que relatam ou analisam episódios singulares e experiências significativas do
internacionalismo: da guerra espanhola às lutas de libertação nacional,
passando pelas revoluções que marcaram o século 20, o papel dos vários partidos
comunistas, o pan-arabismo, o pan-africanismo, etc., ou, mais recentemente, o
zapatismo, o altermundialismo, as lutas dos migrantes, as revoltas que se
expressaram em escala transnacional. ou, mais recentemente o alterglobalismo,
as revoltas que sacudiram a década de 2010 - a maioria das quais se expressaram
em escala transnacional. É simplesmente impossível listar aqui as fontes. Para
a melhor literatura sobre os anos 2010, pode-se referir, entre outros, para as
fontes árabes, ao trabalho de Asef Bayat, em particular (2017), a Kim Moody
(2017) para a nova situação das lutas trabalhistas (com um forte enfoque nos EUA)
a Verónica Gago por ataques transfeministas (2021), a Andreas Malm (2022) por
movimentos ecológicos, a Sue Clayton (2020) por ativismo desencadeado pela
chamada crise migrante na Europa, e a Cedric Johnson (2023) por uma crítica
imanente à BLM.
[2] Embora uma
série de nós conceituais se repitam no texto - como aqueles entre global,
planetário e terrestre, interseccionalidade e (re)composição, universalidade e
diferença - o objetivo das teses não é mergulhar nestes debates teóricos (aos
quais voltaremos em breve), mas fornecer alguns elementos de raciocínio para
estabelecer uma discussão política sobre o internacionalismo hoje.
[3] Para uma
brilhante discussão sobre o legado do internacionalismo histórico e do
cosmopolitismo, ver Balibar (2022). Segundo Balibar, o universalismo defendido
pelo primeiro remonta à figura do proletariado teorizado por Karl Marx e
encontra na luta de classes sua pedra angular; o universalismo defendido pelo
segundo, por outro lado, tem em Kant seu pai espiritual e encontra na
hospitalidade do estrangeiro sua encarnação paradigmática. Para Balilbar, na
medida em que não são mutuamente exclusivas, as duas tradições devem
intensificar seu diálogo e encontrar maneiras de se articularem. O
internacionalismo, de fato, pode proporcionar maior coerência conflitual e
organizacional; enquanto o cosmopolitismo pode ajudar a desenvolver maior
sensibilidade para o outro, e para a dialética da diversidade e da uniformidade
que ele traz. O evento pandêmico, com sua carga de contágio e mortalidade,
tornaria então o encontro entre estas duas abordagens ainda mais premente. No
entanto, a posição de Balibar, por mais original e forte que seja, não leva em
conta a gravidade e a novidade da crise ecológica, limitando-se a uma análise
da pandemia.
[4] Como Perry
Anderson (2002) argumenta no que é um dos melhores artigos sobre o assunto,
qualquer análise das várias experiências que marcaram a história - gloriosa e
infame - do internacionalismo não pode deixar de levar em conta as formas,
operações e geografias do capital coevo com elas. O artigo de Anderson é
extremamente instrutivo e inspirador, mas pode ser criticado por pelo menos
duas razões, que constituem o coração teórico e político da abordagem
desenvolvida nestas páginas. Primeiro, o fio da reconstrução de Anderson é
decididamente historicista e linear: começa com a Primeira Internacional dos
Trabalhadores, continua com a Segunda Internacional dos principais partidos
socialistas e sindicatos, depois passa para a Terceira Internacional dos
Estados comunistas e, finalmente, para a aliança tricontinental de lutas de
libertação anticolonial. Em segundo lugar, a análise de Anderson tem como
objetivo principal analisar as instituições dos movimentos revolucionários,
adotando em sua maioria uma perspectiva de cima para baixo. Em contraste, em
linha com estas teses, é possível imaginar uma abordagem que se ancora em uma
visão multilinear da história, atenta à produtividade política das lutas
autônomas e sua circulação a partir de baixo.
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Em português:
- Rodrigo Nunes, Nem vertical, nem horizontal – Uma teoria da organização política, Circuito Ubu, 2023
-
Verónica Gago, A
potência feminista ou o desejo de transformar tudo, trad. Igor Peres, editora
elefante, 2020
-
Mario Tronti, Operários
e Capital, Afrontamento, 1976
- Asad Haider e Salar Mohandesi, Enquete Operária: Uma Genealogia, passapalavra, 2020
-
Giuseppe Cocco, Negri além de Negri,
Unisinos, 2017
- Étienne Balibar, Estamos em guerra: nacionalismo, imperialismo, cosmopolítica, trad. Bruno Cava, Lugar Comum, 2022
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