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Sergio Rodríguez Gelfenstein
¿Qué hará Marcos Rubio? 

10/07/2021

Momento Saigon no Hindu Kush

Pepe Escobar, Asia Times, 7/7/2021
Traduzido pelo  Coletivo de tradutores Vila Mandinga 

And it’s all over
For the unknown soldier
It’s all over
For the unknown soldier

The Doors, The Unknown Soldier[1]


Comecemos com alguns espantosos fatos em campo.

Os Talibã estão operando em tempo integral. No início dessa semana, seu braço de Relações Públicas dizia que têm sob seu controle 218, dos 421 distritos afegãos – capturando mais e mais a cada dia. Dezenas de distritos são contestados. Províncias afegãs inteiras são perdidas, basicamente inacessíveis para o governo de Cabul – reduzido, de facto a administrar umas poucas cidades espalhadas pelo país e sob cerco.


Já dia 1º de julho, os Talibã anunciaram que controlavam 80% do território afegão. É próximo do que havia há 20 anos, poucas semanas antes do 11/9, como o
Comandante Masoud me disse, no vale Panjshir, quando preparava uma contraofensiva, que os Talibã dominavam 85% do país.

A nova abordagem tática deles funciona como sonho. Primeiro, há o apelo direto aos soldados do Exército Nacional Afegão, ENA [ing. Afghan National Army, ANA], para que se rendam. Negociações rápidas – e acordos cumpridos. Alguns (poucos) milhares de soldados já se uniram aos Talibã sem que um só tiro tenha sido disparado.

Os responsáveis por construir mapas não têm tempo suficiente para carregar dados atualizados em tempo real. O Afeganistão vai-se rapidamente convertendo em caso exemplar de colapso de governo central em pleno século 21.

Os Talibã estão avançando rapidamente no Vardak ocidental, capturando facilmente bases do ENA. É como o prólogo de um assalto contra Maidan Shar, capital provincial. Se obtiverem o controle de Vardak, estarão literalmente às portas de Cabul.

Depois de capturar o distrito de Panjwaj, os Talibã estão também a uma pedrada de distância de Kandahar, fundada por Alexandre, o Grande em 330 a.C. e cidade onde um certo mulá Omar – com pequena ajuda de seus amigos dos Serviços Especiais paquistanesas (ISI) – iniciou a aventura dos Talibã em 1994, liderando a tomada do poder em Cabul em 1996. 

A grande maioria da província Badakhshan – maioria Tadjique, não Pashtun – caiu depois de apenas quatro dias de negociações, com umas poucas escaramuças. Os Talibã até capturaram um posto de colina, muito próximo de Faizabad, capital do Badakhshan.

Rastreei em detalhe a fronteira Tadjique-Afeganistão, quando
viajei pela estrada Pamir no final de 2019. Os Talibã, seguindo trilhas de montanha do lado afegão, conseguiu alcançar rapidamente a lendária, desolada fronteira com Xinjiang no corredor Wakhan.

Os Talibã estão também próximos de um movimento contra Hairaton, na província Balkh. Hairaton está na fronteira afegã-uzbeque, local da historicamente importante Ponte da Amizade sobre o Amu Darya, pela qual o Exército Vermelho partiu do Afeganistão em 1989.

Comandantes do ENA juram que a cidade está agora protegida por todos os lados por uma zona de segurança de cinco quilômetros. Hairaton já atraiu dezenas de milhares de refugiados. Tashkent não quer que esses refugiados cruzem a fronteira.

E não só na Ásia Central; os Talibã já avançaram até os limites da cidade de Islam Qilla, na fronteira do Irã, na província de Herat, e ponto chave de passagem de fronteira, no muito ativo corredor entre Mashhad e Herat. 

Militantes talibã e aldeões afegãos participam de uma reunião para celebrar o acordo de paz e sua vitória sobre os EUA , no distrito de Alingar, na província de Laghman, em 2 de março de 2020. Foto: AFP / Noorullah Shirzada


O enigma Tadjique

A fronteira montanhosa, extremamente porosa – e geologicamente deslumbrante – tadjique-afegã permanece como o caso mais sensível. O presidente tadjique Emomali Rahmon, depois de grave telefonema com Vladimir Putin, ordenou a mobilização de 20 mil reservistas e enviou-os para a fronteira. Rahmon também prometeu apoio humanitário e financeiro ao governo de Cabul.  

Os Talibã, por sua vez, declararam oficialmente que a fronteira é segura e que eles não têm intenção de invadir território Tadjique. No início dessa semana, até o Kremlin fez anúncio críptico, de que Moscou não planeja enviar tropas para o Afeganistão.

Há um momento de suspense, marcado para o final de julho, com o anúncio, pelos Talibã, de que apresentarão proposta de paz, por escrito, a Cabul. Uma forte possibilidade é que não passe de intimação, a Cabul, para que se renda – e entregue o total controle sobre o país.

Os Talibã parecem estar vivendo impulso irresistível – especialmente quando os próprios afegãos muito se surpreenderam ao ver que seu “protetor” imperial, depois de duas décadas de ocupação de facto,
deixou a base aérea de Bagram, no meio da noite, escafedendo-se feito rato.


Compare-se isso e a avaliação de analistas sérios como
Lester Grau, explicando a partida dos soviéticos há três décadas:

Quando os soviéticos deixaram o Afeganistão em 1989, fizeram-no de modo coordenado, deliberado e profissional, deixando atrás de si um governo em funcionamento, forças militares melhoradas para esforço econômico e de aconselhamento, garantindo a continuada viabilidade do governo.

A retirada foi baseada em plano diplomático, econômico e militar coordenado, que permitiu que as forças soviéticas retirassem-se em boa ordem e que o governo afegão sobrevivesse. A República Democrática do Afeganistão (RDA) conseguiu manter-se, apesar do colapso da União Soviética em 1991. Só então, a perda do apoio soviético e os crescentes esforços de Mujahideen (guerreiros santos) e do Paquistão, fizeram a RDA deslizar rumo à derrota em abril de 1992. O esforço soviético para se retirar em boa ordem foi bem executado e pode servir como modelo para outros desengajamentos de nações similares.


Tácito aplica-se mais uma vez, no que tenha a ver com o império norte-americano: “Saquearam o mundo, despindo a terra até a nudez, em sua fome (…) dirigidos pela ganância, se os inimigos eram ricos; por ambição, se pobres (...). Devastam, massacram, tomam, sob falsos pretextos, e tudo isso saúdam como construção do império. E quando nada resta em seu rastro se não um deserto, ao deserto chamam ‘paz’.”

No rastro do hegemon, desertos chamados ‘paz’, em vários graus, incluem Iraque, Líbia, Síria – que geologicamente abrigam desertos – além dos desertos e montanhas do Afeganistão.

Aquela linha-de-rato afegã


Parece que o Think Tank Row [Corredor dos Think-Tanks] em D.C., entre Dupont e Thomas Circle ao longo da Av. Massachussets, não fez de fato a lição de casa sobre o pashtunwali – o código de honra dos pashtuns – ou a ignominiosa
retirada do império britânico, de Cabul.


Mesmo assim, ainda é muito cedo para dizer se o que está sendo comentado como a “retirada” dos EUA, do Afeganistão, reflete o desdobramento definitivo do Empire of Chaos. Especialmente porque não é absolutamente alguma “retirada”: é um reposicionamento – com elementos acrescentados, de privatização.     

Pelo menos 650 “forças norte-americanas” lá estarão protegendo a sempre crescente embaixada em Cabul. Acrescente-se a isso possivelmente 500 tropas turcas – o que significa OTAN – para proteger o aeroporto, mais um número não especificado de “fornecedores”, também conhecidos como mercenários, e número não especificado de Forças Especiais.

Lloyd Austin, chefe do Pentágono,
apareceu com o novo acordo. A embaixada militarizada é referida como “Forces Afghanistan-Forward”. Essas forças serão “apoiadas” por um novo escritório especial afegão, no Qatar.


A principal provisão é que permanece intacto o privilégio especial de bombardear o Afeganistão a qualquer momento que o hegemon queira. A diferença está na cadeia de comando. Em vez do Gen. Scott Miller, até aqui principal comandante dos EUA no Afeganistão, o Bombardeador-em-Chefe será o general Frank McKenzie, comandante do CENTCOM.


Assim sendo, bombardeios futuros virão essencialmente do Golfo Persa – o que o Pentágono descreve, tão graciosamente, como “capacidade acima do horizonte” [ing. “over the horizon capability”]. Crucialmente, o Paquistão já se recusou oficialmente a participar da ‘operação’, embora, em caso de ataques de drones, tenham de sobrevoar território paquistanês no Baloquistão. Tadjiquistão e Quirguistão também se recusaram a hospedar bases norte-americanas.


Os Talibã, por sua vez, não parecem intimidados. O porta-voz Suhail Shaheen disse claramente que quaisquer tropas estrangeiras que não estejam fora do país ao se esgotar o prazo de 11/9, serão consideradas – e o que mais poderiam ser? – tropas ocupantes.

Que os Talibã serão capazes de estabelecer dominância não se discute; a questão é quando. E isso nos leva às duas questões realmente importantes:

1.  Se a CIA é capaz de manter o que Seymour Hersh inicialmente, e eu depois, descrevemos como a linha-de-rato afegã [que financia suas operações clandestinas];
2.  Se a CIA não pode continuar a supervisionar a produção dos campos de papoula e produção de ópio no Afeganistão, e coordenar os estágios subsequentes do business da heroína, para onde se mudará?

Toda e qualquer cabeça pensante em toda a Ásia Sul/Central sabe que o Empire of Chaos, nunca, por duas longas décadas teve qualquer interesse em derrotar os Talibã ou lutar pela “liberdade do povo afegão”. 


Os motivos chaves foram manter uma base avançada crucial e estratégica, no baixo ventre [ing. underbelly] de China e Rússia, “ameaças existenciais”, além do intratável Irã – todos parte do Novo Grande Jogo; para assim se posicionar convenientemente para adiante explorar a enorme riqueza mineral do Afeganistão; e para processar o ópio e produzir heroína para financiar operações clandestinas da CIA. O ópio sempre foi fator relevante na ascensão do império britânico, e heroína continua a ser um dos principais negócios sujos do mundo que financiam nebulosas operações de inteligência.    

O que querem China e Organização de Cooperação de Xangai (OCX)


Agora, comparemos tudo isso e a abordagem chinesa.

Diferentes do Corredor de Think Tank em Washington, DC, contrapartes chineses parecem ter feito a lição de casa. Compreendem que a URSS não invadiu o Afeganistão em 1979 para impor “democracia popular” – o jargão da época –, mas foi de fato convidada pelo governo progressista de Cabul então reconhecido pela ONU, o qual essencialmente desejava estradas, eletricidade, serviços médicos, telecomunicações, educação.


Dado que essas bases da modernidade não seriam fornecidas por instituições ocidentais, a solução teria de vir do socialismo soviético. Implicaria uma revolução social – questão complexa em nação Islâmica profundamente religiosa– e, crucialmente, o fim do feudalismo.

O contragolpe imperial, o “Grande Tabuleiro de Xadrez” de Brzezinski funcionou, porque manipulou os senhores feudais afegãos e a capacidade deles de arregimentar forças – estimulada por grandes fundos (da CIA, de sauditas, da inteligência paquistanesa) – para dar à URSS seu próprio Vietnã. Nenhum desses senhores feudais estava interessado em abolir a pobreza e no desenvolvimento econômico no Afeganistão.   

A China agora retoma do ponto em que a URSS saiu. Pequim, em íntimo contacto com os Talibã desde o início de 2020, quer, essencialmente, levar o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP) – um dos principais projetos da Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) até o Afeganistão. 

O primeiro passo, crucial, será a construção da rodovia Cabul-Peshawar – pelo desfiladeiro Khyber e atual fronteira em Torkham. Significará incorporar de facto o Afeganistão, como parte do CECP.

Trata-se sempre de integração regional em andamento. Cabul-Peshawar será um nodo extra do CECP que já inclui a construção do ultraestratégico
aeroporto Tashkurgan na rodovia Karakoram em Xinjiang, à distância de apenas 50 km da fronteira do Paquistão e também próximo do Afeganistão, bem como do porto de Gwadar no Baloquistão.

No início de junho, uma reunião plurilateral China-Afeganistão-Paquistão levou o Ministério de Relações Exteriores da China a apostar firmemente na “recuperação pacífica do Afeganistão”; e a declaração conjunta também acolheu como bem-vindo “o retorno dos Talibã à vida política do Afeganistão”; e prometeu “expandir laços econômicos e comerciais”.


Assim sendo, de modo algum um Talibã dominante recusará o impulso chinês para construir projetos de infraestrutura e energia orientados para a integração econômica regional, enquanto mantiverem o país em paz e não submetido à turbulência da variedade ISIS-Khorasan – que sempre poderiam respingar sobre Xinjiang.    

O jogo chinês é bem claro: os norte-americanos não devem poder influenciar o novo arranjo em Cabul. Trata-se sempre da importância estratégica do Afeganistão para a Iniciativa Cinturão e Estrada –, interligada com discussões dentro da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), fundada, vale lembrar, há 20 anos, e que, por anos, advogou a favor de uma “solução Asiática” para o drama afegão.

As discussões dentro da OCX quanto à projeção da OTAN sobre um novo Afeganistão como paraíso jihadista controlado por Islamabad, como nada além de nonsense e raciocínio desejante.

Será fascinante assistir ao modo como China, Paquistão, Irã, Rússia e mesmo a Índia preencherão o vácuo na era pós-Guerras Sem Fim no Afeganistão. É muito importante lembrar que todos esses atores, mais os Centro-asiáticos, estão cheios de membros da OCX (ou observadores, no caso do Irã).

Teerã plausivelmente interferiria em potenciais planos imperiais para bombardear, de fora, o Afeganistão – não importa o motivo. Em outro front, não é claro se Islamabad ou Moscou, por exemplo, ajudariam os Talibã a tomar a base aérea de Bagram. O que é certo é que a Rússia tirará os Talibã de sua lista de grupos terroristas. 

Considerando que o império e a OTAN – via Turquia – não estarão realmente de saída, e que a clara possibilidade futura é um impulso da OCX, aliada aos Talibã (o Afeganistão também é observador na OCX) para proteger a nação em seus termos e concentrar-se nos projetos de desenvolvimento do CECP. Mas o primeiro passo parece ser o mais difícil: como formar governo de coalizão nacional real, sólido em Cabul.    

Por mais que a história sugira que Washington tenha querido que o Afeganistão fosse o Vietnã da URSS, fato é que, décadas depois, Washington acabou por ter ali seu próprio segundo Vietnã, repetido, claro, como farsa. Aproxima-se agora um momento Saigon remixed. Temos à frente outro estágio do Novo Grande Jogo na Eurásia.


NTs

[1] E está tudo acabado / Para o soldado desconhecido / Está tudo acabado / Para o soldado desconhecido. Tradução de trabalho, apenas para ajudar a ler, sem ambição poética.

 

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