Pepe Escobar, 1/7/2021
Traduzido pelo Coletivo de tradutores Vila Mandinga
Vivemos tempos extraordinários.
No dia do 100 aniversário do Partido Comunista Chinês (PCC), o presidente Xi Jinping, na praça Tiananmen, com toda a pompa e circunstância, distribuiu poderosa mensagem geopolítica:
O povo chinês jamais permitirá que forças estrangeiras o intimidem, oprimam
ou subjuguem. Quem tente fazer isso logo se verá em rota de colisão contra uma
grande muralha de aço forjada por mais de 1,4 bilhão de chineses.
Ofereci versão concisa (aqui,
traduzida ao port.) do moderno milagre chinês – que nada tem a ver com intervenção divina,
mas com “buscar a verdade a partir de fatos” (copyright Deng Xiaoping),
inspirado por sólida tradição cultural e histórica.
A “grande muralha de aço” evocada por Xi abarca hoje uma dinâmica “sociedade
moderadamente próspera” – meta alcançada pelo PPC às vésperas do centenário.
Arrancar da miséria 800 milhões de pessoas é feito histórico ainda não igualado
– em todos os aspectos.
O conceito surgir há nada menos de 2.500 anos, no clássico Shijing (“O Livro de Poesia”). O Pequeno Timoneiro Deng, com seu olho de águia histórico, reviveu o conceito em 1979, bem no início das reformas econômicas de “abertura”.
Agora se comparem (i) o avanço celebrado na praça Tiananmen – que será interpretado em todo o Sul Global como prova do sucesso de um modelo chinês para o desenvolvimento econômico – e (ii) o vídeo que circulou, de Talibãs pilotando tanques T-55 capturados em vilas empobrecidas no norte do Afeganistão.
A história se repete: vi a mesma cena, com meus próprios olhos, há mais de vinte anos.
Os Talibã controlam agora quase a mesma extensão de território afegão que controlavam imediatamente antes do 11/9. Controlam a fronteira com o Tadjiquistão e aproximam-se da fronteira com o Uzbequistão.
Há exatos 20 anos, eu estava mergulhado fundo em outra jornada épica por Karachi, Peshawar, as áreas tribais do Paquistão, Tadjiquistão e finalmente o vale Panjshir, onde entrevistei o Comandante Masoud – que me disse que os Talibã, naquele momento, controlavam 85% do Afeganistão.
Três semanas depois, Masoud foi assassinado por um ‘comando’ de homens ligados à al-Qaeda e disfarçados de “jornalistas” – dois dias antes do 11/9. O império – no auge do momento unipolar – entrou em tempo integral em suas Forever Wars [Guerras Sem Fim], enquanto China – e Rússia – aprofundaram-se na consolidação da emergência geopolítica e geoeconômica dos dois estados, que logo todos veriam.
Vivemos hoje as consequências dessas estratégias opostas.
A tal parceria estratégica
O presidente Putin acaba de passar três horas e 50 minutos respondendo perguntas não preparadas com antecedência, ao vivo, de cidadãos russos, durante sua sessão anual “Linha Direta” [‘Direct Line’]. É risível a noção de que “líderes” ocidentais do tipo Biden, BoJo, Merkel e Macron conseguiriam lidar com algo ainda que remotamente similar a conversa não ‘coreografada’ e de falas marcadas.
Evento chave: Putin destacou que as elites norte-americanas compreendem que o mundo está mudando, mas ainda querem preservar sua posição dominante. Ilustrou o argumento com a recente travessura britânica na Crimeia, saída diretamente de cena de Monty Python, uma “provocação complexa” que de fato foi anglo-norte-americana: uma aeronave da OTAN havia feito antes um voo de reconhecimento. Putin: “Foi óbvio que o destróier que entrou [em águas da Crimeia] perseguia objetivos militares.”
Antes dessa semana, Putin e Xi reuniram-se em videoconferência. Um dos itens chaves foi muito significativo: a extensão do Tratado China-Rússia de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável [ing. Treaty of Good Neighborliness and Friendly Cooperation], originalmente assinado há 20 anos.
Uma provisão chave: “Se emergir uma situação na qual um dos signatários do Tratado entender que (...) enfrenta ameaça de agressão, as partes signatárias devem fazer contato imediatamente e organizar consultas, com vistas a eliminar tais ameaças.”
Esse tratado está no coração do que já é oficialmente descrito – por Moscou e Pequim – como “parceria estratégica abrangente de coordenação para uma nova era”. Essa definição ampla explica-se, porque é parceria complexa, de vários níveis, não alguma “aliança” concebida como contrapeso e alternativa viável à hegemonia e ao unilateralismo.
Há exemplo eloquente na interpolação progressiva de duas estratégias de comércio/desenvolvimento, a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) e a União Econômica Eurasiana (UEE), que Putin e Xi novamente discutiram, em conexão com a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), fundada apenas três meses antes de 11/9.
Não surpreende que um dos destaques em Pequim essa semana tenha sido as conversações comerciais entre os chineses e os quatro “-stões” da Ásia Central – todos esses membros da OCX.
“Lei” e “regras”
Um mapa do caminho da definição de multipolaridade foi esboçado num ensaio de autoria do Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, que merece exame cuidadoso.
Lavrov avalia os resultados das recentes reuniões do G7, da OTAN e de EUA e União Europeia (EUA-EU), anteriores ao encontro Putin-Biden em Genebra:
Essas reuniões foram cuidadosamente preparadas, de tal modo que não deixa
dúvidas de que o Ocidente desejava enviar mensagem clara: o Ocidente está unido
como jamais antes e fará o que entende que seja o certo nos assuntos
internacionais, ao mesmo tempo em que forçam outros, em primeiro lugar Rússia e
China, a seguir a liderança ‘ocidental’. Os documentos aprovados nas reuniões
da Cornualha e Bruxelas cimentaram o conceito de ordem mundial baseada ‘em leis
e regras’ como contrapeso aos princípios universais de lei internacional, com a
Carta da ONU como sua fonte primária. Ao assim fazer, o Ocidente
deliberadamente evita expor com clareza as regras que diz obedecer, tanto
quanto evita explicar por que seriam necessárias.
Ao mesmo tempo em que desmascara o modo como Rússia e China foram rotuladas
“potências autoritárias” (ou “iliberais”; ing. illiberal), no jargão
prestigiado, feito mantra, de New York-Paris-Londres, Lavrov tritura a
hipocrisia do ‘Ocidente’:
Ao mesmo tempo em que proclama o ‘direito’ de intervir nos assuntos internos
de outros países, em nome de promover alguma democracia como a entende, o
‘Ocidente’ instantaneamente se desinteressa, quando levantamos a ideia de
tornar mais democráticas as relações internacionais, inclusive renunciando ao
comportamento arrogante e comprometendo-se com o que determina a lei internacional,
em vez de ‘regras’.
Aí Lavrov encontra a abertura para uma análise linguística de “lei” e “regra”:
Em russo, as palavras “lei” e “regra” têm a mesma raiz. Para nós, uma regra
genuína e justa é inseparável da lei. Nada disso é assim nos idiomas
ocidentais. Por exemplo, em inglês, as palavras “lei” e “regra” nada têm de
semelhantes. Percebem a diferença? “Regra” não tem muito a ver com a lei, no
sentido de leis aceitas em geral. Tem a ver, isso sim, com decisões tomadas por
quem manda ou governa. Também vale a pena notar que “rule” (ing.) tem a mesma
raiz que “ruler” (ing.)[1], e a segunda significa também “régua”, objeto
corriqueiro para traçar linhas retas. Pode-se inferir que mediante o conceito
de “regras”, o ‘Ocidente’ visa a alinhar todos em torno da visão ocidental, ou
aplicar a mesma régua a todos, de modo que todos caiam num mesmo arquivo.
Em resumo: a estrada para a multipolaridade não obedecerá ultimatos. O G20, no
qual os BRICS estão representados, é uma “plataforma natural” para “acordos
mutuamente aceitos”. A Rússia, por sua vez, está comandando uma Parceria da
Eurásia Expandida. E uma “ordem mundial policêntrica” implica a reforma
necessária do Conselho de Segurança da ONU, “reforçando-o com países asiáticos,
africanos e latino-americanos”.
Os Masters do Unilateralismo trilharão essa estrada? Nem sobre o próprio
cadáver: afinal de contas, Rússia e China são “ameaças existenciais”. Daí nossa
angústia coletiva, espectadores sob o vulcão.[2]
NTs
* Orig. The long and winding road é título e verso de canção dos Beatles, do álbum “Let it Be”, de 1970. Ouve-se aqui [NTs].
[1] Dicionário Etimológico do Inglês: rule (v.) c. 1200, “controlar, guiar, dirigir,” do Francês Antigo riule “impor regra,” do Latim regulare “controlar por regra, dirigir”, do Latim regula “régua” “pedaço reto de madeira”, de raiz do Proto-Indo-Europeu *reg- “mover-se numa linha reta,” com significados derivativos “dirigir numa linha reta,” daí “liderar, mandar.” O significado legal “estabelecer por decisão” aparece registrado desde o início do século 15. O significado de “marcar com linhas” vem de 1590s. O significado de “dominar, prevalecer” vem de 1874. O hino patriótico Brittania Rules [Grã-Bretanha reina] é de 1740. Relacionado: Ruled; ruling.
[2] Ing. Under the Volcano é título de romance de Malcolm Lowry, publicado em 1947. Em ing. aqui; em port., aqui.
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