13/07/2021

PEPE ESCOBAR
“Perdido numa selva romana de dor”[1]
Elogio a James Douglas Morrison, poeta do século 20, morto há meio século, aos 27 anos

Pepe Escobar, The Vineyard of the Saker, 3/7/2021

Traduzido pelo  Coletivo de tradutores Vila Mandinga 


Ele foi como o tigre de Blake,
[2] sempre em fogo, e à caça de arco-íris de Rimbaud[3] – para acabar numa banheira, como Marat.[4] Tinha só 27 anos.

Jim Morrison morreu dia 3 de julho de 1971, em Paris. Meio século depois,
The Collected Works of Jim Morrison: Poetry, Journals, Transcripts, and Lyrics celebra luxuosamente a alma do poeta.


Em vida, Jim publicou, ele mesmo, três edições limitadas de sua poesia: The Lords/Notes on Vision (1969), The New Creatures (1969), e An American Prayer (1970).

Agora, afinal, temos acesso a todos os seus escritos, incluído o roteiro para o filme experimental de Jim, 50 minutos,
HWY, filmado ao estilo do cinema-verdade de Godard, na primavera e verão de 1969 em L.A. e no deserto de Mojave, com Jim no papel de um caroneiro de beira de estrada. Amantes de carros antigos gostarão de ver Jim ao volante de seu Mustang Shelby GT 500, no HD clip de um filme inspirado por HWY.

The Collected Works dá a sensação de um colar de fragmentos mágicos de jade, completado com páginas manuscritas em cadernos, palavras rasuradas, sublinhadas, o resultado talvez similar ao ‘Plano para Livro’ que Jim certa vez esboçou.

A vasta maioria de nós baby boomers somos da geração “morra jovem, não enfeie, deixe um cadáver bonito”. Seguindo nossos próprios mapas do caminho, expostos a tentativa e erro, vivemos todas as trilhas e estradas do excesso; mas diferente do que Blake recomendava, talvez não tenhamos alcançado o palácio do saber.
[5] Nunca deixa de nos surpreender que, diferentes de Morrison, Hendrix, Joplin, Otis Redding, tenhamos, pelo menos, sobrevivido.

Para tantos de nós, então adolescentes, de 1967 a 1971, os Doors estavam impregnados em nosso corpo e alma. Jim era o Dionísio psicodélico, seus ‘alter egos’ excessivos – o Lizard King, Mr. Mojo Risin’ – empurrando-o para cima, mais e mais na direção da próxima viagem na estrada infinita.

Antes de se ter reproduzido em metástase, convertido em lenda instantânea, Jim foi o que Hunter Thompson imortalizaria em
Medo e Delírio em Las Vegas,[6] lançado em 1971: “Um homem em movimento, doente o suficiente para ser totalmente confiante”.[7]

Agora quando a poesia escorre das linhas de som freestyle tecidas por [Robby] Krieger, [John] Densmore e [Ray] Manzarek,[8] e HWY é como uma espécie de prelúdio, L.A. Woman (“tiras e carros / bares de topless / nunca vi mulher / tão só”) pode ser distribuído como prólogo do que estava já evanescendo, dolorosamente evocado por Thomas Pynchon em Inherent Vice, o Maior Romance Hippie de Detetives [também filme, aqui (NTs)] – ou Raymond Chandler com LSD:


“Os psicodélicos 60s, esse pequeno parêntese de luz, têm, afinal de acabar e ficar perdidos, levados de volta para as trevas (...) como certa mão pode surgir terrível de dentro da escuridão, e reclamar para si o tempo, fácil como tirar uma dose de um viciado e destruí-la sem que nem por quê.”

E todas as crianças são insanas.[9]

Qualquer Lista das 10 Mais da Poesia do Século 20 na esfera Anglo-Norte-Americana teria de incluir necessariamente A Segunda Vinda, The Second Coming de Yeats;
[10] Terra Devastada, The Waste Land, de Eliot; e Cantos, de Pound. Dos beats de meados do século, vem Uivo, Howl, de Ginsberg. Daí em diante é terra de Dylan – desde Ballad of a Thin ManDesolation Row e Visions of Johanna até a total dilaceração em Blood on the Tracks (Tangled Up in BlueSimple Twist of Fate).

E então, há The End de Jim Morrison – última faixa de The Doors, gravado em agosto 66, lançado em janeiro de 1967, seis meses antes do “Summer of Love”.[11]

Foi meu querido amigo Quantum Bird – que nem nascido era quando Morrison morreu – quem me levou a uma reapreciação de The End pelo cânone ocidental, gerado por uma frase de Morrison que usei como epígrafe numa
coluna sobre a OTAN (em port., aqui).
Imagens notáveis saltaram como pedras do rio Morrison, como “as ruas são campos que nunca morrem”
[12] de The Crystal Ship, ou “fala em alfabetos secretos”,[13] em Soul Kitchen.

Dias Estranhos / Strange Days não poderia ser mais contemporâneo: “Dias estranhos nos encontraram / dias estranhos nos rastrearam / vão destruir / nossas alegrias casuais / devemos continuar a jogar / ou encontrar outra cidade”.
[14]

Mas só podemos tentar adivinhar para qual porto navegava o Crystal Ship de Morrison, as palavras – “antes / de você / escorregar / para / a inconsciência” – deslizando como cobra, apenas sussurradas. A jornada poderia ser qualquer uma: O Sono Eterno, de Chandler [ing. Big Sleep],
[15] overdose de heroína, assassinato sinistro, suicídio, até mesmo um pacto de morte.
Em geral, Morrison era um Blake cheio de esteroides, a reescreever que “alguns nascem para doce deleite / alguns nascem para noite sem fim”.
[16]

The End  é uma jornada pelos corredores da noite infinita (“o assassino acordou antes do amanhecer / calçou as botas / tirou um rosto da galeria antiga / e caminhou pelo corredor”)
[17]. Não surpreende que Coppola tenha escolhido essa faixa, cuidadosamente, para a abertura de Apocalypse Now – ou O Coração das Trevas (Heart of Darkness) de Conrad localizado no Vietnã, onde o Império estava perdido “numa selva romana[18] de dor / e todas as crianças são insanas”.[19]

Cavalgar a serpente
[20]

Em 1966, quando escreveu The End, dois anos antes do assassinato do Dr. Martin Luther King e de Bobby Kennedy, é como se Morrison tivesse intuído o que viria, que, como poeta trabalhando no ápice do Império, a vida se tornaria necessariamente insuportável.

LSD + Rimbaud + insights em terra Navajo só amplificaram suas iluminações estéticas e filosóficas. The End inclui referência a “cada elemento de colapso sistêmico” – como Quantum Bird observou, da arrogância imperial ao colapso cultural; do ‘wokeism
[21] à perda de controle, pelo império, sobre seu espaço interno; da propaganda distópica, ao senso de total perplexidade diante de um etos que agonizava. Soldados do Movimento ‘Despertai’... estão próximos de serem reprogramados para atuar como assassinos seriais.

Morrison teve essa visão muito antes do Summer of Love, muito antes de Woodstock (verão de 1969), muito antes dos Stones em Altamont (inverno de 1969) – fim oficial de ‘paz e amor’.

Quando o Império colapsa “numa terra desesperada”
[22] – vejam os traços de encenação, de farsa, do remix do Afeganistão, em andamento agora – “não há segurança ou surpresa”.[23] É “o fim do riso e mentiras suaves / o fim das noites em que tentamos morrer”.[24]

“O fim de tudo que permanece”.
[25]

Deixo vocês nesse ponto, cavalgando um Mustang no deserto, rumo à estrada infinita e – em sincronia geopolítica – cavalgando a serpente.

Julian Assange – mantido sob tortura psicológica em Belmarsh pelos senhores do Império, pelo crime de cometer jornalismo – completa hoje (3/7) 50 anos. Julian Assange nasceu no dia em que Jim Morrison morreu.

Dance em fogo.[26] Se se atrever.

NTs

[1] Verso de The End, Jim Morrison, The Doors: “Lost in a Roman wilderness of pain / And all the children are insane”.

[2]Tyger Tyger, burning bright” é verso de William Blake (1757–1827), no poema Tyger, Tyger, que se ouve e lê aqui .

[3] Há aqui um jogo de palavras entre “Rimbaud” e “rainbow”, homófonos quase perfeitos em dois idiomas, intraduzível. Talvez, referência a Alice Cooper. Informação de Internet, valha o que valer .

[4] Oficialmente, Morrison foi encontrado morto numa banheira, em Paris. “Marat numa banheira” faz pensar imediatamente no quadro “A Morte de Marat”, de 1793, de Jacques-Louis David. Sobre Marat, revolucionário assassinado no início da Revolução Francesa, aqui.

[5] “The road of excess leads to the palace of wisdom (...)”. William Blake, Proverbs of Hell.

[6] Orig. ing. Fear and Loathing in Las Vegas .

[7] Orig. ing. “cops and cars / the topless bars / never saw a woman / so alone”.

[8] Integrantes dos Doors .

[9] Verso de The End, dos Doors: “Lost in a Roman wilderness of pain / And all the children are insane”.

[10] Orig. ing. The Second Coming. Aqui, orig. e duas traduções ao port.

[11]Sumer of Love”, San Francisco, 1967.

[12] Orig. ing. “the streets are fields that never die”.

[13] Orig. ing. “speak in secret alphabets”.

[14] Orig. ing. “Strange days have found us / strange days have tracked us down / they’re going to destroy / our casual joys / we shall go on playing / or find a new town”.

[15] Orig. ing. Big Sleep (1939) é romance do gênero policial, do norte-americano-britânico Raymond Chandler, primeiro no qual aparece o detetive Philip Marlowe. Sobre nova edição em português, de 2015, ver notícia aqui .

[16] Orig. Auguries of Innocence: “Some are Born to sweet delight / Some are Born to Endless Night”, de William Blake, aqui .”

[17] Orig. ing. (“the killer awoke before dawn / he put his boots on / he took a face from the ancient gallery / and he walked on down the hall”)

[18] Jim Morrison nasceu em Rome, Georgia, EUA .

[19] Orig. ing. “in a Roman wilderness of pain / and all the children are insane”.

[20] Orig. ing. “Ride the snake”, de The End, Morrison.

[21] Palavra ainda não traduzível ao português, dada a repetição, no Brasil, da palavra em inglês. Faz referência ao que temos chamado de “Movimento ‘Despertai’”: “vidas negras importam”, “vidas gays importam”, todos os identitarismos importa(ria)m .

[22] Orig. “in a desperate land”. De The End, de Morrison.

[23] Orig. no safety or surprise”. De The End, de Morrison.

[24] Orig. “It’s “the end of laughter and soft lies / the end of nights we tried to die”. De The End, de Morrison.

[25] Orig. The end of everything that stands. De End of the Night, de The Doors.

[26] Orig. Dance on fire, The Doors, 1965, edição comemorativa, aqui.

 

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