13/12/2021

PEPE ESCOBAR
“Reconquista”: Em 2022, um argelino islamofóbico quer ‘limpar’ a França do ‘perigo muçulmano’

Pepe Escobar, The Cradle, 9/12/2021

Traduzido pelo Coletivo de Tradutores Vila Mandinga

“— Re quê?, indagou Bianchon.
— Re-toque.
— Re-trato.
— Re-talho.
— Re-tranca.
— Re-truque.
— Re-treta.
— Re-tinto.
— Re-torama.

Essas oito respostas partiram de todos os lados da sala com a rapidez de uma fuzilaria e se tornaram ainda mais engraçadas porque o pai Goriot olhava para os convivas com expressão aparvalhada, como alguém que procura entender uma língua estrangeira.”

Pai Goriot
, Balzac, 1835, tradução e notas de Paulo Rónai,
aqui, pág. 71*

 

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Francês islamofóbico e candidato à presidência, Eric Zemmour magnetiza a extrema direita com suas polêmicas racistas. Nome de família judeu berbere da Argélia, Zemmour significa azeitona em berbere e “buzina” em árabe. Foto: The Cradle


Em agudo contraste com o ambiente político moroso por toda a Europa, a eleição na França – contra todas as probabilidades – promete agora se tornar uma das disputas mais interessantes que teremos em 2022.
Justo quando todos, da Normandia à Côte d’Azur pareciam já conformados a sofrer um segundo surto de macronismo, Eric Zemmour, polemista convertido em político, aparece com uma reviravolta no enredo.
E precisou menos de uma semana. Na 2ª-feira, 29 de novembro, Zemmour
anunciou oficialmente  que concorrerá às eleições. Chegou com cenário completo à De Gaulle, lendo discurso ao som de Beethoven, frente a um microfone antiquado e cercado por livros.
Ali Zemmour anunciou o nome de seu novo partido político: ‘Reconquista’ – inspirado na batalha de sete séculos que os cristãos tiveram de enfrentar para expulsar os mouros da Ibéria, o que afinal conseguiram em 1492.
Para Zemmour e seus ávidos acólitos, trata-se simplesmente de reconquistar a França, arrancando-a outra vez das mãos do inimigo muçulmano.
Depois, no domingo, 5 de dezembro, realizou
seu primeiro comício de candidato diante de mais de dez mil pessoas. Nenhum político francês hoje consegue arrastar semelhante multidão.

Dia seguinte todas as manchetes falavam de manifestantes opositores, um dos quais se jogou sobre Zemmour e aplicou-lhe uma chave de braço, no caminho até o palanque, e da pancadaria entre os apoiadores. Mas pela cartilha de Zemmour, foi um triunfo: saiu de uma lista de propostas incendiárias bem conhecidas e, da noite para o dia, converteu-se em candidato com chances de chegar à presidência.

Todas as apostas estão abertas. A saga Zemmour, claro, tem paralelos com a ascensão de Trump em 2016, que também se mudou da mídia para a política. É doentiamente anti-imigração, e lança o mais fervoroso nacionalismo contra o que os conservadores descrevem em todo o Ocidente como ‘islamo-esquerdismo’.

O cenário de talk show

Nem na França há muita gente que saiba que a campanha presidencial de Zemmour começou num jantar mais ou menos secreto em Paris, em junho passado.

O crème de la crème do establishment francês lá estava, inclusive o Conde Henri de Castries, 66, ex-luminar da Ecole Nationale d’Administration (ENA), alma mater de virtualmente todos e todas que contam nos círculos parisienses de poder.

De Castries é ex-CEO da seguradora gigante AXA; participa da diretoria da Nestlé; é presidente do Bilderberg Club; e dirige o think-tank Institut Montaigne, financiado por grandes corporações. É o mesmo instituto que virtualmente ‘inventou’ um certo Emmanuel Macron em 2017, depois que Francois Fillon, favorito para receber a indicação da Direita, foi destruído por um vazamento sobre empregos e salários suspeitos recebidos por sua esposa.

Se Fillon tivesse sido eleito em 2017, de Castries teria sido Ministro da Defesa.

No jantar, Zemmour disparou duas granadas políticas:

A primeira: “Temos de proibir prenomes não franceses.”

A segunda: “A questão central diante de nós, para a próxima eleição presidencial e os próximos 30 anos, é a imigração de muçulmanos.”

Pode ter demorado seis meses, mas desde o verão passado a irresistível ascensão de Zemmour carrega uma aura de inevitabilidade, atraindo todas as atenções de um ansioso Palácio do Eliseu, onde funcionários registraram corretamente que, em nível ideológico e cultural, Zemmour estava ditando toda a agenda da Direita francesa.

O palanque regular de Zemmour na CNews – variante francesa da Fox News – alcançava pelo menos um milhão de assistentes a cada noite. Tornou-se o darling do megamagnata Vincent Bolloré, proprietário de um
império de mídia de estilo Murdoch. O conglomerado Vivendi, de Bolloré, é proprietário do grupo Canal+, que inclui CNews; 27% de Lagardere, proprietário de Europe 1, Paris Match e Le Journal du Dimanche; e Hachette Livre, dono das editoras Grasset e Fayard.

Bolloré, que não é parisiense ostentação, mas ‘provinciano’ da Bretagne, sempre foi fascinado pela ascensão social de Zemmour – do tipo que só se vê nos esportes ou na música. Jornada semelhante à dele, na esfera intelectual, é evento virtualmente inexistente na França superestratificada.

O arabofóbico

Zemmour vem de família modesta de judeus argelinos que se estabeleceram em St. Denis, subúrbio ‘quente’ de Paris. Construiu sua persona – e correspondente impacto sobre o beau monde parisiense – com racionalismo cartesiano. Por baixo de tudo há inescapável complexo de classe: anseia por aprovação dos notáveis da intelligentsia.

Zemmour é personagem complexo, mas é em geral reduzido à sua obsessão monotemática: O ‘Perigo Muçulmano’. Ao mesmo tempo, é a favor da assimilação, e nada tem contra muçulmanos que se tornam plenamente republicanos.

Zemmour cuidou atentamente de selecionar seu nicho político. O partido Republicanos – do ex-presidente Nicolas Sarkozy – é soft e amorfo demais. A superestrela da extrema direita, Marine Le Pen, sempre captura 20% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial, mas nunca consegue ultrapassar o próprio teto no segundo turno (e aí está um dos segredos mais conhecidos de todos na França; por causa de seu pai fascista, e porque ela não faz parte da elite).

Agora, a elite financeira identificou um caminho perfeito diretamente a partir de O Leopardo, de Lampedusa (“algo tem de mudar, para que tudo permaneça”). Macron ainda é o garoto deles. Zemmour está sendo usado – por doadores banqueiros ‘invisíveis’ – para dividir os votos da direita para Marine Le Pen, e permitir a reeleição fácil de Macron.

E ainda que Zemmour não vença em 2022, o que importa é que Marine Le Pen será definitivamente enterrada, e a via estará desimpedida para um movimento conservador unificado mais próximo dos ‘valores’ que Zemmour prega. E, claro, liderado por Zemmour.

Mas Zemmour enfrenta problema muito sério: como ampliar seu eleitorado de modo a incluir mais eleitores, além dos machos brancos trumpianos furiosos. Trump era bilionário e animal comunicacional, então foi mais fácil para ele. Zemmour é dissidente da própria classe, mal enjambrado, dos que prosperaram no incestuoso, limitadíssimo milieu jornalístico-literário parisiense.

Na família Zemmour, a identidade sempre foi tema de debate crucial. O general De Gaulle foi a entidade suprema – incluída a admiração que manifestava pelos judeus, “seguros de si e dominadores”. O pai de Zemmour, Roger, costumava falar árabe e jogar cartas nos bares da [região do 18º arrondissement] Goutte D’Or.

Zemmour, nome de família berbere, significa ‘
buzina’ em árabe; palavra derivada, Ezmour, designa a oliveira macho no idioma amazigue, principalmente na Argélia. Zemmour sempre se refere a si mesmo como judeu berbere. Não admite ser chamado de árabe, enfatizando que “os berberes foram colonizados, massacrados e perseguidos pelos árabes, islamizados à força.”

E aqui nos aproximamos do coração do enigma: Zemmour é essencialmente arabófobo, muito especificamente contra árabes do Maghreb. Jamais se refere a árabes do Golfo Persa, especialmente aos jihadistas wahhabistas e salafistas – demonstrando parcos conhecimentos do Islã histórico e de suas perversões pelos impérios ocidentais. Parece ser analfabeto para tudo que tenha a ver com o Islã Xiita no arco da resistência; com o Islã do sufismo na Ásia Central; e com o Islã tropical, suave, da Indonésia.

Na França, é tabu discriminar abertamente qualquer árabe. Por isso Zemmour usa “Islã” como uma espécie de termo-valise, para demonizar essencialmente os árabes do Maghreb.

Herói num Balzac remix

Para compreender Zemmour, é preciso ter lido algum Balzac. Diga-se a favor dele que Zemmour é de uma linhagem que está em extinção: produto da cultura literária. Cresceu enterrado em Alexandre Dumas e Balzac – e As Ilusões Perdidas, de Balzac, é sua principal referência.

Desde os 11 anos de idade, Zemmour se autoretratava como Lucien de Rubempré, herói de As Ilusões Perdidas: foi quando decidiu que se tornaria jornalista e autor. A obra-prima de Balzac concentra todas as suas paixões: história, jornalismo e literatura. Rubempré é poeta que se converte ao jornalismo e sonha com escrever novelas históricas.

De tantos personagens inesquecíveis criados por Balzac, Zemmour escolhe um sedutor que ‘compensa’ com muita ostentação as origens provincianas modestas. Os críticos, contudo, rapidamente o identificam com outro personagem de Balzac, não Lucien de Rubempré, mas Rastignac, o ultra-ambicioso obcecado com acumular riqueza e chegar ao cargo de ministro. Não se pode dizer que seja exatamente certo: Zemmour parece preferir viver para sempre em perpétua névoa de glória, sem se deixar prender como engrenagem na máquina burguesa.

Já há sete anos, bem antes de Trump, houve rumores de que uma Geração Zemmour estaria brotando na França: o pessoal que sentia o fogo no ar, quando se deparava com a blitzkrieg combinada de União Europeia, imigração e globalização.

Esse é o núcleo do eleitorado de Zemmour: conservadores burgueses, vítimas da globalização, e as classes populares degradadas, os que realmente perderam com as fronteiras abertas do Globalistão. Ofereceram a Zemmour a chance de se tornar porta-voz da direita esfacelada.

Nem Marine Le Pen poderia desempenhar esse papel, porque a burguesia a considera “populista”, e, além disso, Marine investiu demais na própria desdemonização, para que o establishment a aceite.

Quanto a Sarkozy, foi excesso de ostentação, para as famílias da França ‘velha’. Zemmour, com sua ginga de ‘filho da periferia’ e a bagagem de aluno aplicado dos clássicos da cultura, foi esperto o suficiente para identificar a abertura.

Autodinamitação?!

Zemmour pode não ser do fã clube da Virgem Maria. Mas quando publicou seu livro de 2018, Destin Français [Destino Francês], teve de admitir, diante de plateia fervorosamente católica, que “ninguém pode ser francês sem estar profundamente impregnado pelo catolicismo, seu culto de imagens, a pompa, a ordem imposta pela Igreja, essa mistura sutil de moral judaica, razão grega e lei romana, mas também da humildade dos servos.”

É o mais próximo que se pode chegar do credo de Zemmour.

O que faz com que todos desconfiem dele em todas as terras do Islã – do Norte da África até a Ásia Ocidental, Central e do Sul – é que Zemmour define o “inimigo não no Islã político, no Islamismo, no jihadismo ou no radicalismo islâmico. Para ele, o inimigo é o Islã (itálicos meus).

Denuncia, sem qualquer prova, que ‘o ódio à França’ é da essência dessa religião. O Islã é incompatível com o secularismo, a democracia, a República secular. O Islã é incompatível com a França.”

Foi precisamente o que repetiu domingo passado 5/12, no primeiro discurso como candidato à presidência: choque de civilizações redux.

Sua lista de propostas inclui proibir prenomes muçulmanos na França; “medidas sociais de solidariedade nacional” só para franceses; expulsão de todos os estrangeiros que tenham cometido crimes (pelo menos 15 mil, até aqui); se necessário, fechar as fronteiras francesas; e interromper o fluxo de migrantes – cerca de 400 mil por ano, incluindo solicitantes de asilo legal. Explicitamente deseja proibir que alunos da África e do Maghreb tenham direito a bolsas de estudo.

Zemmour quer limitar a um mínimo a imigração legal. Afirma que o Islã é “civilização muito distanciada da nossa”. Acusa Macron, sem parar, de desejar “dissolver a França na Europa e na África.” Macron afirma que uma mulher também pode ser pai, mas Zemmour reage: “Não concordo. Quero que as crianças tenham um pai e uma mãe.”

Nesse ponto, a islamofobia de Zemmour confunde-se com sua crítica contra o ‘islamo-esquerdismo’ e a nebulosa do ‘woke-ism’ em que tudo se funde, teoria racial, estudos de gênero, pós-colonialismo, interseccionalidade, políticas identitárias e cultura do cancelamento. Esse é o terreno privilegiado no qual ele pode ter mais sucesso com o eleitorado francês de valores tradicionais.

CNews apresentou Zemmour como
O Dinamitador. Mas corre o risco de se autodinamitar, autoencurralado numa armadilha de islamofobia armada por ele mesmo, contando com refundar a direita radical francesa e ‘reconquistar’ a República.

Talvez seja cedo demais, mas Zemmour ainda não conseguiu o ‘salto’ eleitoral que esperava para depois de pisar no ringue. No pé em que está,
não chegará sequer ao segundo turno, pescoço a pescoço com a perene Marine Le Pen e amplamente superado por outra mulher, Valerie Pecresse, discípula de Sarkozy com pegada de dominatrix, que está vendendo a união de uma direita ‘respeitável’ e a capacidade que ela diz ter para livrar a França, de Macron.

Mesmo assim, que ninguém subestime o autodescrito judeu berbere imensamente ambicioso, que quer levar o país a comprometer-se numa jihad islamofóbica... para ‘reconquistar’ a República Francesa.



* Epígrafe acrescentada pelos tradutores. Pai Goriot é o primeiro romance da Comédia Humana em que aparece o personagem Rastignac, que retornará em As Ilusões Perdidas e em outros romances da ‘série’.


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