18/09/2021

MATTHEW EHRET
Se os Talibãs fizerem o jogo certo, Afeganistão pode mudar história da Rota da Seda na Ásia Ocidental


Matthew Ehret, The Cradle, 14/9/2021
Traduzido pelo
Coletivo de Tradutores Vila Mandinga

Considerado no passado “pérola orgulhosa” da antiga Rota da Seda, o Afeganistão está hoje em frangalhos. Mas se os Talibã fizerem o jogo certo, a Rota da Seda Asiática pode mudar a sorte daquele país destroçado pela guerra.
“A natureza tem horror ao vácuo”, e um dos maiores vácuos na história recente aí está, à espera de ser preenchido, tão logo os anglo-americanos partam do Afeganistão depois de estadia de 20 anos, milhões de vidas perdidas e mais de $2,2 trilhões gastos para mandar de volta à Idade da Pedra aquela ‘pérola orgulhosa’ da Antiga Rota da Seda.

A questão agora é: que papel terá a sempre crescente Iniciativa Cinturão e Estrada, chinesa, nessa região e, de modo mais amplo, em toda a Ásia Ocidental?

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Fato é que, de todas as nações no mundo, a China maneja a arma mais viável de defesa da humanidade, disponível para levar adiante, para a fase seguinte de evolução, a emergente Aliança Multipolar, às vezes chamada de Parceria da Eurásia Expandida (ing. Greater Eurasian Partnership).

Essa nova aliança se autoanunciou como tendo por bases os princípios de não intervenção, soberania nacional e o direito de todas as nações ao próprio desenvolvimento, como consagrado na Carta da ONU, e em total oposição aos ideólogos da ‘ordem baseada em regras’, que só sabem ver o mundo pelas lentes do jogo hobbesiano de soma-zero.

Trata-se de bloco de poder criativamente crescente, constituído de diferentes civilizações que não só são capazes de resistir contra as pressões do Leviatã supranacional no curto prazo, mas podem também oferecer ao mundo alternativa abrangente, com potencial para vir a ser o sistema dominante no mundo.

Por menos que o atual governo dos Talibã possa ser defendido como grupo ‘progressista’ ou ‘tolerante’, seja qual for o parâmetro que se adote, é claro, por suas ações recentes, que os Talibã de hoje podem ser criatura diferente da encarnação que se viu em 1996–2000. Esse Talibãs 2.0 prometeu não só formar governo de coalizão que incluirá xiitas e outras representações, e defendeu oportunidades educacionais e de trabalho também para as mulheres, como, também, manifestou visão moderna de crescimento econômico e de clarividência geopolítica.

Porta-voz dos Talibãs Zabihullah Mujahid manifestou esses saberes recém-adquiridos, quando
afirmou: “A ajuda dos chineses formará a base do desenvolvimento do Afeganistão. Cinturão e Estrada reviverá a antiga Rota da Seda. China será nosso portão de acesso aos mercados internacionais.”

Perspectivas de reconstrução

20 anos de guerra destruíram as possibilidades de sobrevivência para 36 milhões de afegãos, com 73.257 baixas entre soldados e policiais e mais de 270 mil civis inocentes mortos durante a ocupação do país pela OTAN.

Por mais que esses números já sejam revoltantes, o número verdadeiro é provavelmente quatro vezes mais alto, se se contam as mortes ‘indiretas’ por falta de comida, de água potável, de adequada atenção à saúde da população etc. Mais de três milhões de afegãos vivem como refugiados no Paquistão, no Irã e na Turquia; e mais de 60% da população sofre de níveis diferentes de doenças psíquicas.

Mas, pelo lado positivo da realidade, o Afeganistão é país de população jovem, com 46% dos afegãos com menos de 15 anos; e 80% com menos de 30. Com o treinamento adequado e visão clara da missão nacional, o Afeganistão pode ser rapidamente posto a trabalhar na reconstrução da própria sociedade, como parte de iniciativa mais ampla de crescimento.

Se minas de cobre, terras raras e ferro podem não parecer muito terrivelmente revolucionárias para indivíduos de visão estreita, lá está o combustível indispensável para qualquer programa genuíno de crescimento nacional de longo prazo, em áreas subdesenvolvidas do planeta. A única razão pela qual os recursos do Afeganistão não tiveram qualquer desenvolvimento ao longo das décadas deve ser buscada na combinação de dois males: guerra sem fim e terrorismo.

Com a configuração em curso, de novo governo que se espera que seja estável e alinhado com Rússia, Irã, Paquistão e China, conta-se com que
variantes de vírus apoiados pelo ocidente, como a variante Khorasan do ISIS sejam mantidas sob controle e impedidas de lançar ataques terroristas contra engenheiros chineses e outros interesses eurasianos que trabalham para construir infraestrutura vital na região.

Muitos analistas temem que ataques como os do ISIS-Khorasan possam converter-se em persistente espinho no lombo de todos e quaisquer interesses que operem para estabilizar a região no próximo período, como espécie de nova estratégica de guerra assimétrica patrocinada clandestinamente por interesses anglo-americanos.

Essa operação que parece estar começando segue o mesmo manual escrito pelo conselheiro de segurança do ex-presidente Jimmy Carter dos EUA, Zbigniew Brzezinski, contra os soviéticos no Afeganistão, há 40 anos, sob a forma da
Operação Ciclone, que injetou mais de meio bilhão de dólares desde 1979 em madrassas e grupos islamistas radicais.

Sinais de que o manual de Zbigniew está sendo reativado aparecem já, com líderes de grupos ligados à al-Qaeda, como o Hayat Tahrir al-Sham,
começando a aparecer reembalados  para os públicos ocidentais, como ‘combatentes da liberdade’, semelhantes aos mujahedin dos anos 1980s.

Surtos de terrorismo, combinados à falta de água potável, de energia e de transportes tornaram quase impossível as atividades de mineração. Por isso o consórcio chinês, que venceu em 2007 a concorrência para desenvolver a mina de Mes Aynak, pouco avançou ao longo dos anos, no acesso àqueles 10 milhões de toneladas de cobre.

Se se conseguir manter a estabilidade na região, pode-se esperar que
a nova fábrica de carvão a ser construída pelos chineses com investimento de $400 milhões cuja construção está prevista para começar esse ano – e dobrará a capacidade energética do país – resulte em custos mais baixos da energia, ao mesmo tempo em que amplie a confiabilidade e a acessibilidade com vistas a atender necessidades da indústria e da população civil. Espera-se também que volte a ser ativado outro contrato para 25 anos, ao valor de $400 milhões, para desenvolver os campos de petróleo em Faryab e Sar-i-pul, suspenso em 2011.

De alta importância estratégica,
as reservas de terras raras do Afeganistão (lantânio, lítio, cério, praseodímio e gadolínio), de valor estimado em $3 trilhões, consideradas as maiores reservas do mundo, serão afinal acessíveis, dando à China a vanguarda na batalha pelos meios de produção de insumos eletrônicos vitais, microchips e supercondutores que constituem a espinha dorsal da civilização contemporânea.

A renda que o Afeganistão obterá dessas iniciativas garantirá ao país o necessário para investir numa grande gama de programas hard e soft no campo da infraestrutura, conforme a nação se industrializa e comece a caminhar com os próprios pés no século 21.

Mudar as regras do Grande Jogo

Megaprojetos dinâmicos, capazes de alterar o jogo, desenvolvem-se atualmente por todos os lados do Afeganistão, oferecendo ricas oportunidades para a reconstrução da região.

Na fronteira do norte do Afeganistão, está em construção um emergente sistema de ferrovia e rodovia, que se estenderá da China à Ásia Central, Irã, Turquia e Europa. Esse sistema funciona em paralelo com a Iniciativa Corredor Médio Leste-Oeste Trans-Cáspio (
Trans-Caspian East-West-Middle Corridor Initiative, também chamado “Corredor do Meio”,) que une dois continentes, começando em Ankara e avançando para Geórgia, Azerbaijão e daí para a China via Turcomenistão e Cazaquistão. Erdogan, que em várias ocasiões tentou tolamente manter um pé em cada um dos dois mundos, chamou esse projeto, corretamente, de “o coração da Iniciativa Cinturão e Estrada”.



Corredor Médio Leste-Oeste Trans-Cáspio [mapa do Governo da Turquia]


Em anos recentes, a Turquia assumiu a via de se afastar cada vez mais de afiliados da OTAN. A Turquia passou a afastar suas ambições econômicas o mais possível da União Monetária Europeia, à qual antes quisera integrar-se. Aconteceu quando a Turquia comprou
sistemas de radares S400 construídos pelos russos e passou a olhar, às vezes contra a vontade, na direção do oriente, onde o volume do comércio Turquia-China subiu, de magros $270 milhões, em 1990, para acima de $29 bilhões em 2019.

O Corredor Internacional Norte-Sul de Transporte (ing.
International North South Transportation Corridor, INSTC), de 20 anos, é outro projeto que está ganhando vida nova, e que afeta profundamente o Afeganistão e a região que o cerca.

O INSTC estende-se por 7.200 km, de São Petersburgo, pelas nações da Europa Oriental e Sudeste Asiático, até o porto de Chabahar no Irã e dali para a Índia – e que começou como iniciativa de Rússia-Irã-Índia –, ampliou-se e passou a incluir Azerbaijão, Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turquia, Ucrânia, Síria, Belarus e Omã (com Bulgária, recentemente incorporada como observadora).


Outros corredores foram traçados ao longo do INSTC que avançam através do Turcomenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Afeganistão, nações que não têm saída para o mar. Um trecho de ferrovia particularmente interessante do Corredor de Transporte INSTC pode ser construído para Cabul, que facilmente se conecta com a
Ferrovia Trans-Afeganistão, que vai do Uzbequistão ao Paquistão, via Afeganistão, e objeto de grande acordo assinado em fevereiro desse ano.

Enquanto especialistas ocidentais em geopolítica consumiram anos para se autoconvencer de que o Corredor de Transporte INSTC rivalizaria com a Iniciativa Cinturão e Estrada da China, a nova realidade pós-mudança de regime agora emergente – construída sobre o pressuposto de uma concepção de cooperação ganha-ganha – demonstrou que aquele projeto está em total harmonia com a Nova Rota da Seda que liga oriente e ocidente.

A participação de Índia e Paquistão como membros plenos da Organização de Cooperação de Xangai em 2017 e a iminente inclusão do Irã também como membro pleno ainda esse ano, também opera na direção de melhores soluções para velhas disputas entre os dois estados vizinhos, que têm tudo a ganhar da cooperação e tudo a perder se continuarem a fazer a função de presa do Grande Jogo dos Anglo-americanos.

Na mais recente reunião da OCX dia 14 de julho passado, os ministros de Relações Exteriores de todos os estados-membros
enfatizaram que todas as prioridades devem “continuar a contribuir para a paz e a reconstrução no Afeganistão. A OCX deve fazer uso efetivo dos mecanismos de cooperação na economia, cultura e em outros campos, de modo a apoiar o Afeganistão no esforço para aumentar sua capacidade para desenvolvimento independente e para alcançar desenvolvimento genuíno e sustentável,” ao mesmo tempo em que “o país integra-se ao desenvolvimento econômico regional.”

Andando através da fronteira sul do Afeganistão, encontramos o Corredor Econômico China-Paquistão [China Pakistan Economic Corridor, CPEC], de $60 bilhões. Embora o conceito seja rico em potencial, o fetiche dos cortes de orçamento no Paquistão (que reduziu em mais de 50% seu programa de Desenvolvimento do Setor Público, forçou as dúzias de programas coligados ao CPEC a ter de andar a passo de caracol, com apenas uma fração do orçamento esperado. Apesar da falta de ímpeto, os tempos estão mudando; e pode-se ver no horizonte uma aceleração dos investimentos, via o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura [Asian Infrastructure Investment Bank, AIIB] ou bancos estatais chineses, como o Banco do Desenvolvimento da China, ou o Banco Export Import da China.


Os dois últimos bancos citados acima atualmente especializaram-se em investimento em infraestrutura internacional, incluindo 777 grandes projetos de energia fora da China, relacionados a mais de 186 Gigawatts a serem alinhados principalmente pelo sul global. No que tenha a ver com o banco AIIB, o Afeganistão tornou-se membro pleno em 2017 e pode vir a se converter em ponto de atração para investimentos na reconstrução nacional.
Segundo o ex-primeiro-ministro do Quirguistão Djoomart Otorbaev, “a China está pronta a investir cerca de $62 bilhões no desenvolvimento do Afeganistão.”

Numa cúpula trilateral, em julho de 2021, de ministros de Relações Exteriores de China-Paquistão-Afeganistão,
produziu declaração conjunta em que se lia: “Os três lados reafirmaram que aprofundarão a cooperação sob a Iniciativa Cinturão e Estrada, a Conferência Econômica Regional [Regional Economic Cooperation Conference, RECCA], o Processo Coração da Ásia-Istanbul [Heart of Asia Istanbul Process, HoA-IP] e outras atividades econômicas regionais.”


A Conferência Regional para Cooperação Econômica [Regional Economic Cooperation Conference] é iniciativa construída pelo governo afegão e que promoveu grandes projetos como o Anel Ferroviário em Torno do Afeganistão [Ring Around Afghanistan Railway] para acompanhar o anel de rodovias já existentes em torno do país.

Para obter pleno efeito da iniciativa, esses programas não podem ser vistos como elementos desconectados, mas como partes de um todo dinâmico unificado.

Em meses recentes, esses projetos e outros ganharam nova vida, e altos funcionários da Síria, Iraque, Líbano, Líbia e muitos outros Estados Árabes já expuseram intenções de se integrar em diferentes níveis à Iniciativa Cinturão e Estrada. Não deve surpreender ninguém que esteja à procura de soluções genuínas para pôr fim à praga do terrorismo, das drogas, da guerra e da fome, e a aliança multipolar deve ser reconhecida como única via para um futuro de segurança e estabilidade.

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