Fausto Giudice, 11 de abril
de 2023
Revisado por Helga Heidrich e Florence Carboni
Fausto Giudice
(Roma, 1949) é um autor, tradutor e editor italiano que vive na Tunísia desde
2011. Em 2005 ele cofundou a rede de tradutores Tlaxcala, e em 2012 a editora
workshop19, que se tornou em 2017 The Glocal Workshop/A Oficina Glocal. Ele é
autor de dois livros de investigação publicados, tradutor de uma dúzia de
outros, e de alguns manuscritos inéditos.
I.
Prelúdio
Sejamos francos: minha geração, a dos babyboomers do 1968, tem uma
tendência geral de olhar com condescendência a geração d@s milenári@s, a de seus net@s. Ou pelo menos é assim que eles muitas vezes
percebem nossas atitudes de veteranos.
Eu mesmo nunca julgo ninguém, e isso me custou muito caro no final. A
traição e a calúnia são o lote comum dos humanos assim que formam uma
sociedade. E entendo perfeitamente bem aqueles de meus jovens amigos que
escolhem o caminho de um eremitério destecnologizado nas montanhas. Comecei a
pensar nisso e a sonhar em criar comunidades rurais onde qualquer objeto
eletrônico ou até mesmo elétrico seria deixado sob guarda na entrada.
Enquanto isso, eu passo, para meu crescente desespero, muito do tempo
que me resta para viver diante de minhas telas e de meus teclados. Vinte e
cinco anos atrás, minhas entranhas se revoltaram contra isso e começaram a
sangrar. Consegui sobreviver, por um milagre inexplicável. O cirurgião que me
operou pela segunda vez me disse que quando eu estava sobre a mesa e minha
pressão arterial havia caído a zero, ele falara à equipe: “Vou comer um lanche,
acho que quando voltar, ele terá passado”. E qual não foi sua surpresa quando
ele voltou da cantina ao descobrir que o gringo polentero ainda estava
respirando. Ele me explicou a hipótese médica de que minha hemorragia digestiva
era síndrome de Mallory-Weiss. Isso foi uma grande ajuda para mim! Eu lhe disse
que, na minha opinião, eu havia sido vítima da síndrome da revolução virtual no
macintosh. O golpe que me deu o fim tinha sido um projeto totalmente desastroso de um bando de idiotas de Marselha, Avignon e arredores para fazer uma
“caravana para a Palestina”. Descobri rapidamente que eles não só eram de uma ignorancia abismal, mas - e isto geralmente anda de mãos dadas -
horrivelmente pretensiosos. Em suma, nenhuma caravana, nem para a Palestina,
nem para qualquer outro lugar, exceto o hospital.
De volta há 12 anos no país onde cresci, sem televisão, sem computador
(não existia), sem telefone celular (a linha fixa dos meus pais, que estava no
meu quarto, quase nunca tocou), tive um choque, uma enxurrada de choques: na
Medina, ruas inteiras de artesãos haviam desaparecido, na Rua Malta Sghira,
todos os artesãos de ferro batido haviam sido substituídos por comerciantes de
móveis mal feitos em madeira barata (as espreguiçadeiras que comprei não
duraram um ano) e plástico, e no mercado central, os belos tomates vermelhos
haviam dado lugar a tomates laranja sem sabor, de sementes híbridas feitas na
UE, e destinados à UE. E oito dos doze milhões de habitantes do país tinham uma
conta na fèsebuc. Como as assinaturas telefônicas são frequentemente associadas
a uma conta no fèsbuc, muitos usuários (ou usados?) só conhecem a internet como fèsbuc, wadzapp, youtube, telegrama ou, agora, tiktok. E é o mesmo em todo lugar, de Medellín a Nablus, de Soweto a Jebel Lahmar [a favela mais antiga de Tunis].
Durante as campanhas
eleitorais às quais assisti em meu “país de retorno”, não vi um único cartaz colado
em um muro. Nenhuma das centenas de pessoas com menos de 45 anos que conheci
nestes 12 anos jamais escreveu e preparou um panfleto, a ser distribuído às cinco da manhã na porta de alguma usina, ou às oito na porta de um colégio, ou ao meio-dia em algum mercado, ou às 18h na saída de uma loja de departamento.. Ou seja, resumindo, passamos do collé-serré [pegado-apertado, uma maneira “suja” de bailar] de minha juventude
para o copié-collé-posté-liké-buzzé [copiado-colado-postado-curtido-zumbado] de hoje.
E as três dúzias de bastardos que estão tentando governar nosso planeta
implodido estão trabalhando intensamente (ou melhor, fazendo seus escravos haiteque trabalharem
duro) para garantir que não precisem mais de nós, ou seja tentando nos exterminar, ao mesmo tempo que preparam sua fuga, para a lua ou para o Marte ou para outro lugar. Há
alguns anos atrás, um vigarista genial conseguiu vender títulos para terrenos
na lua a israelenses que sentiram que o projeto sionista estava definitivamente
falhando e e não tinham mais escolha: era preciso colonizar a lua. Lá, pelo menos, eles tinham certeza de que estariam em território garantido araberrein [limpo de árabes].
II. Malika e Malika
Em 5 de junho de 2021, recebi uma notificação de Yezid Malika Jennifer:
“Boa noite, senhor. Obrigada pela homenagem à minha tia Malika Yezid,
morta em 1973 por gendarmes [emoji] boa noite”.
Em 7 de junho, segunda mensagem:
“A pequena lá embaixo era Malika. Li seu livro e quando vi o nome Yezid, que também é meu nome, ele tocou meu coração. Porque esta história destruiu minha família. Minha avó me contou esta história. Todos estes abusos [policiais], estas famílias destroçadas, é horrível. Todos estes nomes destas vítimas: nunca devemos esquecer. Tenha um bom dia”.
Eis, a seguir, aquilo a que ela estava se referindo:
“No domingo
24 de junho, gendarmes em Fresnes à procura de um menino argelino de 14 anos
que lhes tinha escapado, atacaram sua irmãzinha. Malika Yazid estava brincando no
pátio do bairro provisório dos Groux, onde ela morava, em Fresnes. Ela foi até
o apartamento para avisar seu irmão. Os gendarmes invadiram o apartamento.
Um deles, após ter dado um tapa em Malika, trancou-se em uma sala
com ela para um “interrogatório”. Um quarto de hora depois, Malika deixou a
sala e desmaiou no chão. Ela morreu quatro dias depois no hospital Salpétrière
sem ter saído do coma.”
Estas são as
onze linhas que dediquei à pequena Malika, esbofeteada até a morte por um
gendarme aos oito anos de idade, naquele terrível verão de 1973, a seqüência
mais dura das duas décadas de Arabicídios que reconstruí em meu
livro com esse nome e publicado em 1992. Este livro tinha sido uma escolha
óbvia, feita durante a obra sobre o anterior, Têtes de Turcs en France [Cabeças de turcos na França], publicada em
1989, que tinha tido bastante sucesso (mais de 25.000 exemplares vendidos,
naquela época ainda foram lidos livros impressos em papel). Era dolorosamente
óbvio que era impossível dedicar um único capítulo da Têtes de Turcs (do qual cada capitulo descrevia um exemplo de apartheid à francesa:
trabalho, saúde, escola, moradia, etc.) ao que, naquele então, era chamado de “crimes
racistas” pois haviam sido demasiadamente numerosos. Decidi portanto dedicar uma outra obra a esse tema. Durante dois anos, a sala da minha espelunca em Ménilmontant estava atravessada por uma prancha comprida colocada sobre duas cadeiras, na qual acumulavam-se as pastas amarelhas, por casos e por anos. Em suma, um prelúdio material (madeira, tinta,
papel) dos quadros Excel do futuro próximo.
No final, eu tinha 350 desses casos em 21 anos, isto é 16,6 por ano, 1,3 por mês. Uma
ninharia em comparada com os Negricídios nos EUA. Mas por favor,
não estamos na ianquelândia, estamos no berço dos Direitos Humanos e do
Cidadão, todos os homens nascem
livres e iguais em direitos etc.
etc., que acabamos de celebrar com grande pompa nos Champs-Élysées com o
desfile de Jean-Paul Goude para o Bicentenário da Grande Revolução! Admito que
durante estes dois anos de intenso trabalho de investigação, fui mais de uma
vez ameaçado pela depressão e por um desejo de fuga, talvez não para a lua, mas
em todo caso longe de Madame la
France, como diziam os magrebinos
(em referência à nota de 100 francos com a efígie da Liberdade com a mama nua
que guia o povo).
Os momentos mais penosos foram os processos, onde pobres famílias
árabes sofriam uma segunda morte, infligida pela frente dos enfarinhados:
juízes, procuradores, advogados de defesa e réus la mano en la mano, e jurados - quando estavam em tribunal criminal
de Júri - totalmente estupefatos e mudos. Eu nunca ouvi um único jurado dizer
uma palavra durante um julgamento de três dias. Isso faz você se perguntar para
que servem esses jurados “populares”?
A família de Malika não
precisou passar por isso: o caso foi rapidamente enterrado como de costume. Mas nada mais
foi poupado. Jennifer Malika Fatima é uma das duas únicas sobreviventes da
família, dizimada pela hogra
(desprezo), a droga, a delinquência
e, por trás de tudo isso, o chamado “transit”. O bairro de “transit” de Les
Groux, em Fresnes, a um passo da prisão (“prático”, diz seu tio Nacer, o
único outro sobrevivente, que teve um gostinho dela), uma situação temporária
que durou para sempre. Abandonada ao seu destino com sua avó após o suicídio de
sua mãe, ela foi colocada em uma família de acolhimento gaulesa pura aos 18
meses. Ela ficou lá por trinta anos e finalmente escapou a seu destino após ter escapado todos os perigos habituais que esperam as crianças das classes
perigosas racializadas.
E agora, eis que, no dia 7 de abril, o SEU LIVRO saiu! Um verdadeiro evento! Eu não
quero estragá-lo, mas apenas dizer o seguinte: este livro é a melhor realização
que conheçi até hoje do desejo que tinha formulado para mim mesmo quando meu
próprio livro Arabicides foi publicado. Eu não estava satisfeito com o resultado
final do meu trabalho, sonhava com o livro A Sangue Frio de Truman
Capote, que havia visitado e conversado com dois jovens assassinos no corredor da morte durante
anos e dessa relação havia produzido uma obra-prima. E eu gostaria de ter “cozinhado” alguns
arábicidas e seus parentes, mas não consegui encontrar nenhum. Mas eu
não era Truman Capote, La Découverte não era uma grande casa nova-iorquina que
pudesse pagar detetives, eu era apenas um obscuro jornalista italiano
“islamo-esquerdista” antes da invenção deste termo (“Ah! Você fala muito bem
francês” – “Você o diz, cara de pau, o francês é nosso espólio de guerra”),
editado por uma editora com um passado glorioso (François Maspero) mas um
presente crítico (foi mais tarde comprada por uma multinacional), em suma, eu
disse a mim mesmo que meu trabalho era um serviço mínimo a prestar às gerações
futuras que iriam querer saber mais sobre esta história e que gostariam de
desenterrá-la.
Foi exatamente o que aconteceu trinta a cinqüenta anos depois. É
sempre a terceira geração que arranca o passado do esquecimento: é verdade
para os armênios, para os judeus da Europa e para todos os outros. É a geração
d@s net@s das vítimas de crimes estatais maciços, concentrados ou diluídos que
trazem à tona experiências traumáticas coletivas e as transmite para a
próxima. O livro de Jennifer Malika Fatima é, que eu saiba, o primeiro desse gênero, construído sobre as memórias, conversas e os incríveis
arquivos cuidadosamente preservados e arquivados por sua avó, uma cabila (supostamente)
analfabeta.
Não se trata de uma tese de doutorado com formato acadêmico, que geralmente é ilegível para uma pessoa comum, que por ventura a quisesse ler. O livro de Malika Fatima é um soco que você leva na barriga. Assim que o recebi, o engoli inteiro e o terminei em duas horas. Depois me refugiei atordoado em uma ruminação de algumas semanas. O tempo de digerir. Este texto é o resultado da minha digestão, pois prometi a mim mesmo publicar esta resenha não convencional para o lançamento do livro dia 7 de abril.
O livro, pelo qual Jennifer Malika Fatima foi apoiada de forma fraterna
e respeitosa pela escritora Asya Djoulaït para a formatação do manuscrito e
pelo historiador Sami Ouchane para a apresentação dos documentos extraídos dos
arquivos - que não tentaram impor-lhe uma formatação acadêmica -, é magnificamente
posfaciado pela querida Rachida Brahim, outra estrelinha brilhante das gerações
vindouras a quem eu havia dito a mim mesmo que meu livro seria capaz de falar.
O livro beneficiou-se de uma edição cuidadosa e exemplar de uma jovem editora
feminista em Marselha, Hors d'atteinte[Fora de
alcance], que descobri com deleite, e cujo catálogo perturbou
minhas glândulas salivares, ao ponto de amanhã ter uma consulta com meu
dentista para a remoção de um cisto mucoso.
Parabém Senhoras, vocês me curaram de qualquer tentação de
condescendência. Acho que pertencemos à mesma espécie: a dos humanos que não
sabem do que se está falando quando alguem diz: pensões. Vou terminar
com esta frase de Nietzsche que concluiu meu livro: “O homem de longa memória é
o homem do futuro”. Homem, é claro, tomado no sentido de Mensch,
ser humano, em alemão e yiddish.
Portanto, não hesite e corra para sua livraria local
(esqueça Amazonzon*, por favor!) e encomende o livro se você puder ler em
francês (ele é distribuído pelo Harmonia
Mundi). Caso contrário, você terá
que esperar por uma versão em português. Trabalhamos nele. Qualquer editora
interessada pode escrever para tlaxint[at]gmail.com.
Nota
*Zonzon é uma antiga palavra francesa que significa zumbido,
mas na gíria francesa significa prisão (por aférese de prison)
como substantivo, e louco como adjetivo. E de fato, o império de Jeff Bezos
é uma prisão zumbidora.
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